segunda-feira, 6 de junho de 2016

Artigo de Opinião - Álcool e adolescência



Prevenir e reduzir o beber entre adolescentes é uma responsabilidade coletiva, que requer o envolvimento e a parceria das autoridades governamentais, das famílias e da comunidade


            O álcool, sem dúvida, tem um importante impacto no cérebro dos adolescentes, não podendo ser considerado um “produto qualquer”. Até bem pouco tempo, os pesquisadores acreditavam que o nosso cérebro estava completamente amadurecido até o final da adolescência, sendo este um período de intenso processo de desenvolvimento e  maturação cerebral. No entanto, as descobertas atuais apontam para o fato de que o nosso cérebro sofre um processo de maturação até os 25 anos.
            De modo geral, durante a adolescência, as regiões cerebrais que nos dizem “Vá em frente”, representadas pela região límbica, amadurecem mais rapidamente do que aquelas que nos dizem “Não faça isso”, representadas pelo córtex pré-frontal. Portanto, não é difícil imaginar que, se o uso de bebidas alcoólicas ocorrer durante essa fase de amadurecimento cerebral, será observada uma série de consequências que comprometem a delicada arquitetura e o funcionamento de neurotransmissores em desenvolvimento, afetando a capacidade cognitiva e de aprendizagem, assim como o comportamento de controle dos impulsos e emoções nos adolescentes, que se encontram em um contexto de formação das habilidades mencionadas, especialmente relevantes entre seus pares.
            Muitos de nós – pais, professores e profissionais da saúde – sabemos que o uso de álcool é um grave problema de saúde pública no Brasil e em vários outros países. O álcool, uma substância legal, é a droga mais largamente consumida por jovens do mundo todo. Em uma tendência quase mundial, tem-se observado que o hábito de beber está aumentando gradativamente entre as meninas e, em alguns locais, supera o índice entre meninos da mesma idade. Os adolescentes brasileiros estão iniciando o uso de álcool cada vez mais cedo (em média aos 13,9 anos) e passando a um uso regular de álcool também muito rapidamente (em média aos 14,6 anos), sendo que 24% desses mesmos adolescentes bebem pelo menos uma vez ao mês.
            O bebê típico dos adolescentes é conhecido como beber em binge. Em geral, eles bebem muito em curto espaço de tempo ou em uma única ocasião. Esse padrão de consumo promove elevados níveis de álcool e, por conseguinte, aumenta a vulnerabilidade desses jovens a sérios riscos. A realidade de muitos dos adolescentes que concluem o ensino médio é manter ou agravar o padrão de beber após o ingresso na faculdade. São demasiadamente conhecidas as inúmeras “chopadas” em diversos campi espalhadas pelo país afora, onde são promovidas festas regadas a muita bebida – e, sobretudo, bebida barata.
            Esse uso durante a adolescência predispõe os jovens a uma série de riscos, tais como violência interpessoal, mais brigas e argumentações negativas com os pais, problemas na escola no dia seguinte ao beber, iniciação sexual e gravidez precoce  (com arrependimento posterior), acidentes de trânsito, traumatismos, quedas, suicídio, diminuição do desempenho acadêmico, envolvimento em atividades criminais e risco aumentado de dependência do álcool. Jovens que começam a beber antes dos 15 anos têm quatro vezes mais chances de desenvolver dependência na vida adulta e duas vezes e meia mais chances de se tornar abusadores de álcool do que aqueles que começam a beber após os 21 anos.
            Beber em um padrão característico de dependência já ocorre em cerca de 7% dos adolescentes de 12 a 17 anos dos maiores centros brasileiros. Isso significa dizer que muito provavelmente estamos falando de jovens que podem apresentar tremores das mãos, náuseas e vômitos ao acordar pela manhã, suores pelo corpo durante a noite  por já terem uma constelação de sintomas característicos de abstinência do álcool, além de intensa vontade de beber novamente, o que chamamos de “fissura”: uma vez iniciado o uso, não conseguem mais controlar-se e bebem até ver o fim de todas as garrafas de bebidas que estão por perto. Soma-se a isso um progressivo desinteresse por outras atividades que outrora eram prazerosas, e o álcool vai ocupando cada vez mais espaço durante o dia do jovem.
            No Brasil, a compra e a venda de bebidas alcoólicas para jovens antes de 18 anos é proibida por lei há muito tempo. Infelizmente, porém, a maioria dos jovens ouvidos em algumas pesquisas considera que comprá-las no país é fácil ou muito fácil, sendo que 87,4% deles acha especialmente fácil adquirir cerveja em casa, em festas de 15 anos, bares, supermercados e até mesmo em festas juninas da escola, enquanto apenas, 1,1% já tentou comprar bebida alcoólica e não conseguiu.
            O governo do estado de São Paulo, na vanguarda das políticas públicas, decidiu acertadamente investir seus esforços em fiscalizar uma lei que já existe e assim punir estabelecimentos que vendam, facilitem ou permitam o consumo de bebidas (uma droga ilícita e amplamente disponível, mas sem um mercado regulado) para jovens abaixo de 18 anos, com a criação de uma lei que prevê punições aos infratores.
            O uso de álcool durante a adolescência tem um elevado custo financeiro e outros tantos custos associados à dor e ao sofrimento de muito jovens e suas famílias, que talvez não seja algo facilmente mensurável em números. Nos estados Unidos, por exemplo, o custo associado ao beber entre menores foi de US$62 bilhões em 2010. Desse valor, US$1,3 milhão foi gasto devido à síndrome alcoólica fetal em grávidas adolescentes (já que a idade mínima para dirigir naquele país é 16 anos) e US$2,5 milhões em tratamento de jovens devido a transtornos relacionados ao abuso de álcool.
            Se esse dinheiro fosse poupado pela não necessidade de ser gasto com tais finalidades, seria possível revertê-lo para outras tantas atividades voltadas à formação e ao fortalecimento de várias habilidades e fatores protetores  dos  nossos jovens. Na verdade, para cada US$1 investido em atividades de prevenção, são economizados US$10 em tratamento no futuro, o que denota que prevenção segue valendo a pena.
            Então, se reduzir o beber entre adolescentes continua sendo algo desafiador diante de estatísticas tão assustadoras e das modestas conquistas dos últimos anos em muitos países, inclusive aqueles desenvolvidos e mais ricos, como estados Unidos, Inglaterra e Austrália, será que realmente existe um erro pedagógico em nossa sociedade e em nossas mensagens aos jovens? Tudo indica que sim, já que vivemos – particularmente no Brasil – em uma cultura que associa a cerveja à ideia de felicidade, sensualidade, propriedades refrescantes e, sobretudo, a nossas “paixões nacionais”, como o futebol, a música e o carnaval.
            Até mesmo ídolos consagrados, símbolos de beleza, inocência e juventude, como a cantora Sandy,  em  recente propaganda de uma marca de cerveja com o slogan “Todo mundo tem o seu lado devassa”, vendem a ideia de que parece não existir ninguém “tão careta assim”. Então se pressupõe que “Tudo bem beber e que, aliás, você vai ficar mais interessante se beber”. Não é de hoje que a indústria do álcool tem-se dedicado a atrair novos consumidores, com maciça publicidade e estratégias de marketing  ao público jovem. Alguns exemplos são o festival da música Skol Bits e a crescente introdução no mercado das bebidas chamadas “tipo ice”, com menor teor alcoólico.
            A família também exerce uma importante influência no uso de álcool durante a adolescência e contribui com algumas das estratégias pedagógicas equivocadas. Estudos  indicam que o chamado “uso supervisionado”, que ensina o beber responsável e com
moderação durante a adolescência, dentro de casa ou junto com os pais, por exemplo, traz sérios riscos de evoluir para o uso em um padrão nocivo e até mesmo de dependência quando esses jovens vão para a faculdade. O chamado uso supervisionado parece não transmitir uma mensagem de beber seguro. Por outro lado, adolescentes que não bebem assim e postergam o início do uso de álcool para além da adolescência têm menos chances de desenvolver alcoolismo ou beber de forma perigosa e nociva à saúde no futuro.
            Medidas de prevenção de uso, abuso e dependência de álcool entre os adolescentes têm sido adotadas com o lema “Comece a falar antes que eles comecem a beber”. Nesse sentido, têm crescido as recomendações de especialistas para que a escola possa também se apropriar da tarefa de reduzir o hábito de beber entre adolescentes. Essas estratégias vêm sendo amplamente disseminadas pelo Pacific Institute for Research and Evaluation (PIRE) há muitos anos em congressos e atividades diversas, ligadas a um local chamado Underage Drinking Enforcement Training Center.
            Entre as constatações, está a de que as campanhas de conscientização e educação sobre “beber de forma segura” na escola e na comunidade irão possivelmente gerar resultados limitados. Escolas que adotam a postura de “não beber nada”, programam as estratégias sociais e legais relacionadas ao não beber antes da idade permitida por lei e fiscalizam essas leis, denunciando os estabelecimentos das imediações dos colégios que  estão vendendo bebidas para adolescentes, muito provavelmente às primeiras. Desse modo, festas realizadas na escola ou com a participação de alunos não podem permitir a venda de bebidas alcoólicas, nem mesmo o famoso vinho quente ou quentão em festas juninas ou nas tão sonhadas e aguardadas festas de 15 anos.
            As velhas e as novas mídias, incluindo as mídias ambientais (por exemplo, banheiros de “baladas” frequentadas por jovens) e sociais, como facebook, Twitter e Youtube, podem ser fontes de divulgação de matérias sobre prevenção do beber entre adolescentes, com trabalhos e histórias de sucesso feitos por e para adolescentes. É preciso incluí-las no processo de conscientização na escola e nas comunidades, desconstruindo diversos mitos e falsos heróis que associam a diversão e o prazer única e exclusivamente ao beber.
            Portanto, prevenir e reduzir o beber entre adolescentes é, sem dúvida, um problema complexo e um desafio que não demanda uma solução simples, mas também é uma responsabilidade coletiva que requer o envolvimento e a parceria das autoridades governamentais, das famílias e da comunidade para modificar essa cultura que ainda ameaça o bem-estar imediato e a longo prazo de muitos jovens, bem como daqueles ao seu redor.

·         Alessandra Diehi é psiquiatra da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (UNIAD/UNIFESP), especialista em Dependência Química e Sexualidade Humana.
·          Gisele dos Reis Coutinho é psicóloga, especialista em infância e adolescência.

Fonte: Revista Pátio Ensino Médio. Ano 4. Nº 1.Março/Maio 2012

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