quarta-feira, 18 de maio de 2016

Você sabia disso ? - Os 400 anos da morte de William Shakespeare e Miguel de Cervantes

William Shakespeare pôs no papel e no palco, como nenhum outro autor, a luta pelo poder e os dramas do amor. Miguel de Cervantes criou o personagem que se tornou o símbolo maior da aventura humana entre sonho e loucura. Mortos há 400 anos, os pais do teatro e da literatura modernos deixaram para nosso tempo, mais do que isso, pistas valiosas para nossa compreensão do mundo e de nós mesmos. Nos próximos dias, eles serão lembrados pelo público por um conjunto de obras que retrataram a tragédia e a comédia da vida.


23 DE ABRIL?

Oficialmente, eles morreram em 23 de abril. Mas os leitores que homenagearem os dois nesse dia estarão participando, na verdade, de uma pequena ficção. Explica-se: naquela época, a Inglaterra ainda usava o calendário juliano, enquanto a Espanha já havia adotado o gregoriano, comum hoje em todo o Ocidente. Assim, o 23 de abril em que Shakespeare morreu corresponde ao nosso 3 de maio. O bardo inglês, portanto, se foi dez dias após o romancista espanhol — e ainda há a tese de que Cervantes teria morrido no dia 22. Nada que atrapalhe as celebrações, é claro, e elas já estão a todo vapor desde o início do ano pelo mundo, inclusive no Brasil. A confusão de datas, porém, acrescenta à festa uma dimensão farsesca que provavelmente divertiria os dois autores.

ESPANHA RICA, INGLATERRA TURBULENTA

A diferença de calendários é também um bom lembrete da distância entre os mundos de Shakespeare — a turbulenta Inglaterra da rainha Elizabeth imersa em conspirações — e de Cervantes — a Espanha opulenta que vivia seu Século de Ouro. Apesar disso, é grande a tentação de imaginar que os gigantes das letras se conheceram, ou ao menos se leram, como mostram livros e filmes dedicados ao assunto.

A primeira hipótese, pouco provável, é tema do filme “Miguel e William”, dirigido pela espanhola Inés Paris, que será exibido dia 29 no Rio como parte dos festejos do Instituto Cervantes. A comédia romântica especula que Shakespeare, em um período pouco documentado de sua vida, na década de 1580, teria morado em Madri, conhecido o romancista e até, vá lá, disputado com ele o amor de uma mulher.

INFLUÊNCIA ENTRE OS GÊNIOS

Já a hipótese de que eles se leram tem um defensor de peso, o historiador francês Roger Chartier. Especialista na história do livro e da leitura, Chartier publicou em 2011 o ensaio “Cardenio entre Cervantes e Shakespeare” (Civilização Brasileira), que investiga a relação entre os dois autores a partir de um fato curioso. A peça “A história de Cardenio”, atribuída a Shakespeare e seu colaborador John Fletcher, é protagonizada por um personagem saído das páginas de “Dom Quixote”. Cardenio é um homem amargurado que narra ao Cavaleiro da Triste Figura a desventura amorosa que o levou a ter a mulher de sua vida roubada por um figurão. A peça elimina Quixote e se concentra na história de amor.

Segundo a tese de Chartier, foi Fletcher, que já havia levado textos do escritor espanhol aos palcos ingleses, quem apresentou “Dom Quixote” a Shakespeare. Lançado em 1605, o romance logo circulou por toda a Europa: foi traduzido na Inglaterra em 1612, na França em 1614 e pouco depois na Itália e na Alemanha. Já Cervantes dificilmente conheceu a obra do bardo, porque as peças do autor de “Hamlet” só ganharam encenações pela Europa bem depois, como diz o historiador francês:

‘A obra de Cervantes circulou imediatamente, porque o espanhol era uma língua muito identificada com as novidades literárias de seu tempo. Shakespeare só se torna um autor importante fora da Inglaterra no século XIX’

- ROGER CHARTIER
Especialista em Cervantes

— A obra de Cervantes circulou imediatamente, porque o espanhol era uma língua muito identificada com as novidades literárias de seu tempo. Shakespeare só se torna um autor importante fora da Inglaterra no século XIX, em grande parte por causa da leitura feita pelos românticos europeus. E suas peças históricas só passaram a ser mais encenadas após a Segunda Guerra.

Vencendo esse longo percurso, as obras de Shakespeare e Cervantes chegaram até nosso tempo com legados diferentes, mas igualmente valiosos para a cultura contemporânea.

— A grande invenção de Cervantes foi escrever um romance com a linguagem cotidiana — afirma Chartier. — “Dom Quixote” não tem nada do tom artificial dos romances de cavalaria ou das pastorais de sua época. É um livro escrito na língua de todo mundo, e é isso que faz escritores o considerarem até hoje um romance moderno. Já Shakespeare deu uma dimensão poética singular ao teatro, com uma técnica original de misturar gêneros como a tragédia, o drama histórico e a comédia. Tudo é ambíguo em sua obra, da política ao amor, talvez por isso ela tenha uma ressonância tão forte em nosso tempo.

Ex-diretor associado da Royal Shakespeare Company e encenador de mais de 20 obras de Shakespeare — entre elas sete versões internacionais para “Hamlet” —, o diretor brasileiro Ron Daniels diz que o mais extraordinário na obra de Shakespeare é justamente que ela não lida “direta ou obviamente com os problemas de seu tempo”. A ação de suas peças não se passa em Londres, e nem mesmo no fim do século XVI, mas em tempos ou lugares distantes.

— São fábulas, sonhos — diz Daniels. — Ao mesmo tempo em que seus temas e preocupações parecem imediatos e urgentes, eles nos levam a ver a nós mesmos, no aqui e agora, não naquilo que é moda ou circunstância, mas no que é mais humano e universal.

Há pouco tempo, Daniels recebeu de presente do ator inglês Mark Rylance o livro “A biografia heterodoxa de Shakespeare” (2013), de Diana Price. A obra causou controvérsia ao questionar se o bardo foi ou não o único autor de suas obras. O diretor agradeceu o presente, mas deixou o livro de lado.

— O que importa, para mim, não é o homem que escreveu as peças, mas seu legado incomparável, que nos traz ao encontro de nós mesmos. Um teatro popular, inteligente, épico, vigoroso e vibrante.

Também universal, a obra de Cervantes carrega muito da realidade da Espanha de seu tempo, avalia o tradutor Ernani Ssó. Ele é responsável pelas versões mais recentes dos dois principais livros do autor no Brasil: a edição de “Dom Quixote” publicada pela Companhia das Letras em 2012, e “Novelas exemplares”, lançada pela Cosac Naify no ano passado.

— Há muito da Espanha daqueles dias no “Quixote” e nas “Novelas”: as guerras com os muçulmanos, a expulsão dos mouros, o catolicismo desvairado, a corrupção da burocracia real, a violência contra as mulheres e a luta desesperada das mulheres por suas vidas e suas honras. Bom, a luta das mulheres continua tristemente atual, não? — questiona Ssó.

‘Cervantes segue atual. Ele entendia de gente, de seus anseios e medos profundos. Só isso já seria motivo suficiente para lê-lo’

- ERNANI SSÓ

Tradutor


Para ele, a diferença fundamental entre os dois livros está na maneira como Cervantes exercita neles seu apurado senso humor. Nas “Novelas”, ainda no início da carreira e preocupado em provar aos acadêmicos que “sabia escrever”, o humor divide espaço com melodrama e aventuras mais realistas. No “Quixote”, a intenção satírica é óbvia desde o começo, diz o tradutor, “mesmo que o sentimento que temos ao final seja de melancolia”, como é natural “nas grandes comédias”.

Autor do prefácio de uma edição recente da comédia de Shakespeare “Muito barulho por nada”, também publicada pela Companhia das Letras, Ssó acredita que, nos melhores momentos, o inglês e o espanhol “conseguem ser trágicos e engraçados ao mesmo tempo".

Para aproximar o humor e a melancolia de Cervantes do leitor de hoje, Ssó tentou colocar a prosa de Cervantes “em português do Brasil, com nosso ritmo, nossa musicalidade”. O texto original, diz o tradutor, é “fácil e divertido", e por isso ele buscou em sua versão recriar essas qualidades, sem ignorar o abismo de 400 anos que nos separa do autor do “Quixote”, mas também mostrando aos leitores que esse abismo não é intransponível.

— Cervantes segue atual. Ele entendia de gente, de seus anseios e medos profundos. Só isso já seria motivo suficiente para lê-lo. Mas, ao contrário de muitos autores antigos, ele escreveu de um modo que continua atraente para os leitores de hoje. Ele poderia ter dito a famosa frase de Stevenson: “Deleitar é servir; não é difícil instruir e entreter ao mesmo tempo, mas, em troca, é muito difícil conseguir plenamente o primeiro sem o segundo” — diz Ssó. — Em “Dom Quixote”, ele ilustrou com graça infinita dois grandes dramas: nossa necessidade de sonho, de evasão, e nosso medo de ficar preso no sonho, de enlouquecer. Nós continuamos a viver hoje esses dois dramas.

Luzes sobre Cervantes

Inspiração para gerações de artistas, de Salvador Dalí a Orson Welles, o personagem do fidalgo sonhador que luta contra moinhos de vento é hoje parte da cultura popular de todo o mundo. Mas a vida de seu criador, quase tão venturosa quanto a da criatura, é pouco conhecida até mesmo por seus leitores. Para tentar mudar esse cenário, o Instituto Cervantes organizou as homenagens mundiais pelos 400 anos da morte do autor de “Dom Quixote” como uma incursão pela biografia do escritor.

— Quixote é conhecido na Índia, na China e na Arábia, mas Cervantes ficou um pouco eclipsado por seu maior personagem. Com as celebrações deste ano, queremos resgatar as memórias e histórias do autor. Ele foi um homem generoso e tolerante, esteve na guerra e na prisão, mas morreu pobre e esquecido, apesar do sucesso do “Quixote”. Foi um grande aventureiro — diz Oscar Pujol, diretor das unidades do Instituto Cervantes no Rio e em Porto Alegre.

“SEMANA CERVANTINA”

No início do ano, a programação oficial chegou a ser criticada pelo jornal espanhol “El Pais”, que, em artigo intitulado “Muito Shakespeare, pouco Cervantes”, disse que o planejamento da Inglaterra para homenagear o bardo estava mais adiantado que o das celebrações para o autor de “Dom Quixote”. De lá para cá, o Instituto Cervantes promoveu mais de 500 atividades, em uma série de eventos que culmina, na Espanha, com a “Semana Cervantina”.




Cervantes 
Quem foi?

Filho de um cirurgião, o espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) viveu na Itália, lutou na batalha de Lepanto (1571), passou cinco anos preso em Argel (1575-1580) e, de volta à Espanha, tornou-se comissário na corte de Felipe II. Colecionou insucessos literários até publicar sua obra-prima. Escreveu até morrer, aos 69 anos.




De 20 a 28 de abril, as cidades de Madri e Alcalá de Henares, terra natal do autor, verão debates, palestras e espetáculos sobre o contexto histórico e curiosidades biográficas do escritor. O Instituto criou também um grande mapa interativo sobre a vida de Cervantes, com registros sobre cada região por onde passou, que está sendo exposto ao redor do mundo.

No dia 23, é tradicionalmente entregue o Prêmio Cervantes, mais importante láurea da literatura em língua espanhola (neste ano, o ganhador é o mexicano Fernando del Paso). No mesmo dia, na Catalunha, onde a data coincide com o feriado do padroeiro da região, São Jorge, casais têm o hábito de trocar rosas e livros.

O Brasil entra no circuito dos festejos com uma série de eventos. Em São Paulo, haverá no dia 23 uma leitura contínua, ao longo de todo o dia, de obras do escritor. Já no Rio, até o fim do mês, está em cartaz uma exposição de livros de Cervantes na Biblioteca Parque Estadual, no Centro. E no dia 30, o instituto promove uma homenagem ao escritor na Biblioteca Popular Lima Barreto, na Maré.

— O evento na Maré vai reunir entre 80 e 100 crianças para uma grande celebração da obra de Cervantes — diz Pujol. — Queremos lembrar uma frase do “Quixote” que bem poderia ser brasileira: “Cortesia engendra cortesia”

CICLO DE CINEMA

Além disso, desde o início do mês, uma mostra de filmes sobre a vida de Cervantes na sede do instituto (rua Visconde de Ouro Preto 62, Botafogo). A última sessão, dia 29, terá a comédia “Miguel & William”, de Inés Paris, que imagina um encontro entre o escritor espanhol e o dramaturgo inglês. Em agosto, será instalado na Praça Mauá o mapa interativo sobre a vida de Cervantes. A programação carioca completa está no site http://riodejaneiro.cervantes.es.

Prova da universalidade da obra de Cervantes é que, para além da programação do instituto, uma das principais homenagens ao escritor espanhol será feita na Inglaterra, justamente pela Royal Shakespeare Company. O espetáculo “Dom Quixote”, adaptado por James Fenton e estrelado por David Threlfall, fica em cartaz na cidade natal do dramaturgo inglês, Stratford-Upon-Avon, até 21 de maio.

Herança que é tudo, menos óbvia
POR JOCA REINERS TERRON
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Questionado em entrevista se seus livros seriam lidos em 50 anos, o escritor espanhol Javier Marías respondeu com nova pergunta: considerando que sejam lidos, por acaso serão compreendidos? Retrospectivamente, a pergunta cabe ao “Quixote” de Miguel de Cervantes: quem suporta tanta efeméride, e quem lê tanta edição de luxo, ao menos no Brasil? Bem, talvez na Venezuela, onde Hugo Chávez distribuiu 1 milhão de exemplares em 2005, em edição prefaciada por José Saramago.

Aos 400 anos da morte de Cervantes, sua herança continua a ser tudo, menos óbvia. Se aspectos metaliterários, autorreflexivos e paródicos (um longo etc.) influenciaram a melhor literatura posterior (Fielding, Defoe, Sterne, Flaubert, Melville e Machado de Assis, para mencionar clássicos dos séculos XVIII e XIX), sua inflexão irônica marcou movimentos recentes, como o pós-modernismo norte-americano de John Barth e Donald Barthelme.

Ok, porém, em meio aos leitores não especializados, o chamado “leitor comum”, quem nessa imensidão ainda se animará a ler uma obra que todo mundo dá por lida, mesmo sem nunca tê-la tido em mãos? A história do “Quixote” é demasiado conhecida, dando a impressão de que a sabemos desde antes do nascimento. Poucas obras literárias padecem dessa condição. É como se o livro fosse um “chip” instalado em nossos cérebros.

Borges, cria cervantina, evidenciou o “jogo de estranhas ambiguidades” proposto a partir da segunda parte do romance, na qual os personagens já leram a primeira parte e se tornam, eles próprios, leitores do “Quixote”. Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do “Quixote”? Borges: “Tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios.”

William Burroughs, outro quixotesco, sugeriu que a consciência humana é uma gravação girando em “loop” no vazio. Se observarmos o que mídias mais modernas como a TV fazem com o comportamento da plateia, torna-se simples compreender por que Cervantes não passa de um nome na capa de edições de luxo que nunca são lidas: sua obra já alterou a realidade, e não passamos de joguetes ficcionais sob comando do grande títere.

Joca Reiners Terron é escritor e organizador da coleção Otra Língua (Rocco), de literatura latino-americana

Bardo por toda parte


Shakespeare 400 - Divulgação
Shakespeare em aplicativo, em mostra de filmes, em feira literária, na mesa de debate, na praça, na rua, na sala de aula e também no teatro, claro. Se o mundo é um palco, o dono dele é o bardo. E nos 400 anos de sua morte, a ideia é mostrar que ele sobrevive, e está por todos os lados. Para isso, instituições britânicas e brasileiras criaram o projeto “Shakespeare vive”, que busca evidenciar o quanto a sua obra está implicada em nossas vidas até os dias de hoje, nas esferas do real ou do virtual, através dos mais variados temas: política, paixão, raça, gênero e classe, entre outros. Idealizado pelo British Council, o projeto é parte de um programa mundial, que acontece em 140 países, e no Brasil se desenvolve através de atividades como o Fórum Shakespeare; a Casa Shakespeare, que será montada durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho; e a British House, instalada no Parque Lage durante os Jogos Olímpicos, em agosto.

— O conceito do programa, em todo mundo, é aproximar Shakespeare da vida de todos nós, mostrar o quanto suas obras fazem parte das nossas vidas individuais e, também, da sociedade — diz a diretora adjunta de artes do British Council no Brasil, Lucimara Letelier.




William Shakespeare 
Quem foi

O inglês William Shakespeare (1564-1616) nasceu em Stratford-upon-Avon, numa família abastada. O pai passaria por dificuldades financeiras depois, e ele nunca iria para a universidade. Escreveu sua primeira peça aos 25 anos. Ainda escreveria outras 36, além de 154 sonetos e centenas de poemas. Morreu aos 52 anos .




No Brasil, o calendário do “Shakespeare vive” começou na última quinta-feira em São Paulo, com o primeiro debate da série “Shakespeare 400: Todo o mundo é um palco”, que terá novos encontros em Paraty (1º de julho, na Flip, com o tema “Admirável mundo novo”), na cidade do Rio (18 de agosto, na British House, ainda sem tópico definido) e em Belo Horizonte (22 de maio, no CCBB-BH, com o mote “Reflexões perturbadoras e profundas de Shakespeare sobre o amor e o sexo”).

Produzido por CCBB, British Council e People’s Palace Project, o Fórum Shakespeare acontece em São Paulo (20 a 25 de abril), Belo Horizonte (13 a 22 de maio) e Rio de Janeiro (20 a 29 de maio). Além de debates, seminários e oficinas, o projeto prevê a montagem de três peças, com atores brasileiros e direção de nomes da Royal Shakespeare Company e do National Theatre Wales. A primeira, “Macbeth”, com direção de Greg Hicks, estreia na próxima quarta, no CCBB-SP, e fica em cartaz até o dia 25. Em maio, o CCBB-BH recebe “O mercador de Veneza”, com direção de Catherine Paskell. O Rio entra na rota entre 18 e 21 de agosto, com “A tempestade”, dirigida por Vik Sivalingam, na British House do Parque Lage.

— “A tempestade” é um dos mais mágicos trabalhos de Shakespeare. A sua genialidade como dramaturgo está na sua capacidade de lidar com dualidades. Nessa peça, por exemplo, ele justapõe elementos sobrenaturais e as mais humanas emoções — diz Sivalingam. — A mestria dele se dá em diferentes níveis: forma teatral, comentário sobre as emoções e relações humanas e uma poesia capaz de elevar o mundano ao espiritual. Ele intriga e faz pensar enquanto narra histórias incríveis.

Além das peças, o Fórum apresenta seminários com Jerry Brotton, autor de “Shakespeare e o Islã”; Joad Raymond, especialista no séculos XVI e XVII; e Catherine Silverstone, autora de “Conversa sobre Shakespeare e trauma — Um olhar dedicado a cultura queer na performance”.

— São 400 anos da morte de Shakespeare e, apesar dessa distância, ele ainda é extremamente atual — diz o idealizador do Fórum, Paul Heritage. — O intuito do evento é discutir e ver o quanto as questões levantadas por esse dramaturgo há centenas de anos ainda nos tocam e dialogam com os nossos dias.

MAIS ROTEIRIZADO DA HISTÓRIA

Na Flip, a Casa Shakespeare irá abrigar palestras de seis autores ingleses, cujos nomes serão revelados em maio. Além dos debates, haverá performances e uma mostra de filmes, com títulos inspirados em Shakespeare: “Henry V” (1944), de Laurence Olivier; “Rei Lear” (1970), de Peter Brook; “Macbeth” (1971), de Roman Polanski; e “Hamlet” (1996), de Kenneth Branagh, e outros. A seleção, feita pelo British Film Institute, também será exibida na British House. Criador de 37 peças, Shakespeare é o autor mais roteirizado da História — com mais de 1.149 créditos — e, em 2016, inspira 26 novas criações.

— As duas casas serão espaços de convivência, com atrações tanto para especialistas como para aqueles que irão ter o seu primeiro contato com Shakespeare — diz Luiz Coradazzi, diretor de artes do British Council. — Na Flip, teremos grandes autores, debates, além dos filmes, que forma remasterizados.

Em conversa com o GLOBO, de Londres, a diretora do “Shakespeare lives” na Inglaterra, Rosemary Hilhorst, diz que a versão global do programa envolverá milhões de pessoas. Além de reafirmar a tão propalada atualidade das peças, o programa busca botar essa premissa à prova, testando ações direcionadas ao público jovem. Para isso, não são exatamente as montagens teatrais o principal atrativo.

— Queremos que os jovens se envolvam, e aí entra a maneira de fazer isso — diz. — Colocar estudantes para assistir a duas horas e meia de uma peça é um trabalho duro. É preciso pensar diferentes maneiras de envolvê-los.

Uma parte importante do programa, portanto, é o engajamento online. Aí entram em cena a produção de filmes curtos e de aplicativos, assim como a campanha “Play your part”, em que personalidades e pessoas comuns poderão gravar e postar vídeos com seus trechos favoritos de Shakespeare.

— Em junho, vamos lançar o app “Mix the play”, que vai permitir aos usuários atuarem como diretores de um trecho de “Sonho de uma noite de verão” — conta Rosemary. — Cada um vai poder criar a sua cena, escolhendo cenário, atores, luz, música, e então disponibilizá-la on-line. Caberá a um júri escolher a melhor. Além disso, lançamos um MOOC (curso online massivo aberto). Estamos investindo muito no digital, e o resultado é muito positivo.

Nessa busca por jovens de todo o mundo, as principais companhias inglesas seguem desenvolvendo novas plataformas e conteúdos on-line. É o caso da Royal Shakespeare Company (RSC), do National Theatre e do Shakespeare’s Globe, com os canais Globe Player (globeplayer.tv), On Screen (onscreen.shakespearesglobe.com), RSC Live (homemcr.org/event/rsc-live) e National Theatre Live (ntlive.nationaltheatre.org.uk). Montagens também estão em curso, como o novo “Hamlet” da RSC, que apresenta uma versão inspirada na cosmologia africana, com o ator Paapa Essiedu sendo o oitavo Hamlet negro do teatro britânico. A RSC ainda acaba de estrear um ciclo de peças em Nova York e prepara uma versão tecnológica de “A tempestade”, através de uma parceria com a Intel.

No âmbito oposto ao virtual, o Globe completa, no próximo dia 23, a sua volta ao mundo com “Hamlet”. A jornada “Globe to globe Hamlet” (globetoglobe.shakespearesglobe.com) começou em Londres, em 2014, percorreu 205 países — incluindo o Brasil, em 2015 — e agora cumpre seu ciclo retornando ao palco elisabetano do Globe Theater.

— Apresentamos “Hamlet” ao ar livre, a todo tipo de público, livrando-o das amarras da academia — diz o diretor artístico do Globe, Dominic Dromgoole. — Teatro ainda é um lugar de carne, palavra, movimento e de um milhão de contingências que podem alterar cada performance. É a mais viva das artes e, numa era tão virtual, a presença se torna uma virtude especial.

A arte da palavra
POR GERALDO CARNEIRO

Shakespeare 400. 'Hamlet' em montagem da royal shakespeare company 2016 - Divulgação
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Como quase todos sabem, é uma dureza traduzir Shakespeare. Mas a experiência do convívio com o seu texto é tão maravilhosa que vale o risco de naufragar no mar de suas metáforas.

Fui chamado pela primeira vez para traduzir uma de suas peças, “A tempestade”, há 35 anos. Eu já sobrevivia (mal) à custa de escrever. Em razão dessa relativa penúria, aceitei a encomenda, não apenas pelo deleite, mas pelo leite das crianças.

Desde o princípio do processo, fiquei fascinado pelas palavras de Shakespeare. É como se o teatro, através delas, adquirisse asas e conquistasse uma grandeza sem precedentes.

Depois de “A tempestade”, encenada no Parque Lage, traduzi “As you like it”, a convite de Maria Padilha, e me arrisquei a trazer para o português alguns dos sonetos de Shakespeare. A partir dos sonetos, fui acometido pela obsessão de traduzir suas peças em versos, o que é de uma insanidade absoluta e pode levar um escritor ao Pinel. Mas foi o que fiz quando recebi as encomendas de traduzir “Trabalhos de amor perdidos”, “Antonio e Cleópatra”, “Romeu e Julieta” e de traduzir-adaptar o “Rei Lear” para um solo de Juca de Oliveira.

Atualmente, coordeno uma oficina de tradução shakespeariana no Teatro Poeira, a convite de Aderbal Freire-Filho, e traduzo o texto “Os vilões de Shakespeare”, de Steven Berkoff, por encomenda de Marcelo Serrado. Tem sido uma delícia conviver com as grandes cenas — isto é, os momentos mais canalhas — dos principais vilões do bardo. É fácil reconhecer seus sucessores no mundo atual e perceber que já deveríamos ter aprendido a neutralizar sua astúcia e sua perversidade. Felizmente, os vilões de hoje, embora tão canalhas como os de Shakespeare, não falam mais em poesia: falam uma prosa de terceira classe. Convencem menos.

Ao longo desse convívio, compreendi que a razão da permanência de Shakespeare nos últimos 400 anos não é só a força de sua histórias e de seus personagens, mas o poder de suas palavras. Palavras de violência, palavras de dor, palavras de alegria. E sobretudo o poder de suas palavras de amor, que conquistaram essa pequena eternidade de quatrocentos anos, e que muito provavelmente o manterão vivo, enquanto haja mundo. Como se pode ver em seu soneto 116:

Não tenha eu restrições ao casamento/De almas sinceras, pois não é amor /O amor que muda ao sabor do momento,/E se move e remove em desamor. /Oh, não, o amor é marca mais constante/Que enfrenta a tempestade e não balança,/É a estrela-guia dos batéis errantes,/Cujo valor lá no alto não se alcança./O amor não é o bufão do Tempo, embora/Sua foice vá ceifando a face a fundo. /O amor não muda com o passar das horas,/Mas se sustenta até o final do mundo. /Se é engano meu, e assim provado for,/Nunca escrevi, ninguém jamais amou.

Geraldo Carneiro é poeta e tradutor de obras de Shakespeare, como “A temp



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