terça-feira, 5 de abril de 2016

Foi Bentinho que traiu Capitu

De Millôr Fernandes para a Veja on-line.

Publiquei, através de anos, no Estadão, no O Dia, e no Jornal do Brasil – ao todo aproximadamente dois milhões de exemplares – “pesquisa” sobre Dom Casmurro, a obra magna de Machado de Assis. Como minha página era a capa exterior dos jornais citados, e o assunto era picante – se Escobar, “herói” do romance, tinha ou não tinha comido a Capitu, eterna e tola discussão entre beletristas –, devo ter alcançado pelo menos cem mil desprevenidos. Bom, não apenas mostrei que Escobar comeu a Capitu, como, não sei não, acho que tirei Dom Casmurro do “armário”.

Como não sou dos maiores – e nem mesmo dos menores – admiradores do bruxo, fundador da Academia Brasileira de Letras (“a Glória que fica, eleva, honra e consola”, eu, hein, que frase!), não vou discutir a maciça, inexpugnável web protecionista que se criou em torno dele. Não quero polemizar (falta-me vontade e capacidade) com a candura que os erúditos (com acento no ú, por favor) têm pra relação equívoca entre Capitu, a “dos olhos de ressaca” (que Machado não explica se era ressaca do mar ou de um porre), e Escobar, o mais íntimo amigo de Bentinho, narrador e personagem do livro (evidente alter ego do próprio Machado).

A desconfiança básica vem desde 1900, quando Machado publicou Dom Casmurro. Dom Casmurro é ou não é corno, palavra cujo sentido de humilhação masculina – que ainda mantém bastante de sua força nesta época de total permissividade – na época de Machado era motivo de crime passional, “justa defesa da honra”, e outros desagravos permitidos pela legislação e pelos costumes.

Curioso que, ontem como hoje, o epíteto corna não se grudou à mulher. Ela é tola, vítima, “não sei como suporta isso!”, “corneia ele também!”, mas o epíteto não colou.

Dom Casmurro sofre da dor específica umas 50 páginas do romance, envenenado pela hipótese da infidelidade de Capitu. Que dúvida, cara pálida? Capitu deu pra Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado, só não coloca no livro o DNA do Escobar porque ainda não havia DNA. Mas fica humilhado, desesperado mesmo, à proporção que o filho cresce e mostra olhos, mãos, gestos e tudo o mais do amigo, agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de comborço (parceiro na cama).

Mas, pela nossa eterna pruderie intelectual, também ainda ridiculamente forte com relação a outro tipo de relação, a homo, nunca vi ninguém falar nada das intimidades entre Bentinho e Escobar. É verdade que, na época, Oscar Wilde estava em cana por causa do pecado que “não ousava dizer seu nome”.

Não fiz interpretações. Apenas selecionei frases – momentos – do próprio Dom Casmurro/Machado, da edição da Editora Nova Aguilar. Leiam, e concordem ou não.

Pág. 868 “Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo.”

Mesma página “Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro… Não sei o que era a minha. Mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou…”

Pág. 876 “Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes também e Escobar mais que os rapazes e os padres.”

Pág. 883 “Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele alva e lisa. A testa é que era um pouco baixa… mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas.

Realmente era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino e delgado.”

Mesma página “Fui levá-lo à porta… Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.”

Mesma página “Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.

– É o Escobar, disse eu.”

Pág. 887 “– Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração.

– Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça… Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro, e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.”

Pág. 899 “Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se não me visse desde longos meses.

– Você janta comigo, Escobar?

– Vim para isto mesmo.”

Pág. 900 “Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.”

Pág. 901 “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão: um padre que estava com eles não gostou…”

Pág. 902 “Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos.”

Pág. 913 “Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.”

Pág. 914 “A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força.”

Págs. 925/26 (Depois da morte de Escobar) “Era uma bela fotografia tirada um ano antes. (Escobar) estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida no peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas costas do cartão: ‘Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70′.”

• • •

P.S.: Mas, se vocês ainda têm dúvida, leiam a página 845 do fúlgido romance. Bentinho, ele próprio, fica pasmo, e realizado, quando consegue dar um beijo (quer dizer, apenas uma bicota) em Capitu. É ele próprio quem fala, entusiasmado com seu feito de bravura:

“De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:

– Sou Homem!”

Millôr Fernandes

3 comentários:

  1. Resposta a Millôr sobre Dom Casmurro
    Se não fosse de alguém cujo estilo de produzir é o escracho de quase tudo para um público alvo que não tem tempo para refletir; seria repugnante… Por não se ater ao que o autor exatamente escreveu, e sim superficialmente se deu ao direito de usá-lo como Mote para pilhérias de consumo imediato.
    Respeito o Senhor Millôr Fernandes pelo que sua pessoa representa para o seu grande público heterogêneo quanto à faixa etária, formação escolar e acadêmica, os amantes desse tipo de azedume presente dos seus comentários ─ direito e gosto a ser respeitado, todavia podendo ser comentado e até refutado… Parece-me que antecipadamente (como que de forma transcendental) Machado vislumbrou esse estilo literário e de agir em Millôr quando da sua Teoria do Medalhão ─ haja chalaça e mais chalaça, coisa comum aos medalhões reproduzirem em seus comentários, exatamente como Machado informa no final do seu conto sobre essa figura exótica.
    Ridícula não é a Academia de Brasileiras Letras (porqunto, aquele autodidata de quem Millôr é desafeto foi seu primeiro presidente), também não, Shakespeare e de maneira nenhuma Machado de Assis; entretanto, medíocre é sim a peça teatral Otelo, o Mouro de Veneza do grande Shakespeare, a qual ganhou status de algo bom e de nível excelente na adaptação machadiana Dom Casmurro, cujas diversas interpretações, como esta de Millor. Contradiz o que disse o grande teatrólogo Eugênio Kusnet; que sentenciou ser necessário analisar cada personagem nos seus objetivos (o que ele é de fato na obra) ─ materializá-lo de forma objetiva dentro do enredo da mesma; e não nos darmos ao direito ilegítimo de achar isto ou aquilo sobre este ou aquele personagem de qualquer obra a revelia do que o autor de fato escreveu. Ver Blog REAL EVOLUÇÃO DA FEITURA DA OBRA DOM CASMURRO, endereço ─ http://www.verdadedomcasmurro.blogspot.com .
    P. S. Não existe nenhum sair do armário e muito menos com essa conotação ─ embora todo o mundo assim afirme ─, no discurso do jovem apaixonado por Sócrates, Alcebíades na obra O Banquete de Platão… Quem não vê e entende o contrário disto; perdeu a oportunidade de ficar calado sobre o assunto. Ver final do Blog também de minha autoria O QUE É O PLC 122 OU A DITA LEI HOMOFÓBICA, endereço ─ http://www.verdaderespeitoejustica.blogspot.com . A síndrome ou psicose do ver ou de transportar esse pseudo “armário” para todos os lugares, nessa ou naquela pessoa ou até personagem de ficção, como é o caso aqui; chega às raias do ridículo por ser exatamente uma espécie de leitura de analfabeto funcional para o discurso do jovem homossexual Alcebíades ─ homoafetivo: o eufemismo plenamente correto, pois define esse sentimento e direito de assim sentir e fazer ─ o qual, tem que ser seriamente respeitado por todos nós, mas, sem a glamorização exacerbada que se tem dado.
    Atenciosamente JORGE VIDAL

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  2. Para inumeráveis escritores renomados e críticos literários,
    Machado de Assis é o maior escritor do Brasil de todos os tempos. Para mim, ele é o maior do mundo exatamente por criar uma obra que ainda hoje (e sempre) causa polêmica, instiga estudos, discussões e interpretações várias. Concordo plenamente com a crônica do Millôr sobre Dom Casmurro. Sem dúvida que Bentinho amava Escobar com o “amor que não ousava dizer o nome”.
    É evidente. Mas, o grandioso disso tudo, é o talento de Machado
    ao relatar tão elegantemente e com artifícios literários inimagináveis, uma história elementarmente homossexual, numa época onde isto era impossível. Só sendo um “bruxo” para criar uma obra prima tão polêmica num país ainda tão ignorantemente preconceituoso e pejorativamente infantilizado como o Brasil. Salve! Salve, o bruxo do Cosme Velho!

    Yuri disse:

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  3. Oi, Gusmão!
    Aqui estou de volta a esse seu Blog: Sério veiculo de debate democrático.
    Aproveito; considerando o dito popular: “Ninguém chuta cachorro morto” (desprezada a literalidade, e sim no ensino que o ditado quer dar); para render as minhas sinceras homenagens póstumas ao grande formador de opinião que foi Millôr Fernandes, de quem discordei, todavia respeitando-lhe os postulados.
    O cerne do pequeno fórum que se tornou o assunto em apreço em seu Blog, Gusmão; nada mais é do que a discussão da improcedente Obra Aberta ─ que considero heresia literária… Para tanto me permito transcrever outro comentário meu, que consta do Blog A Real Evolução da Feitura da Obra Dom Casmurro, endereço http://www.verdadedomcasmurro.blogspot.com . Comentário que segue:
    A questão Obra Aberta é algo de suma importância e precisa ser discutida para que este assunto se defina de maneira plena sem aquelas argumentações excessivamente ambíguas (no momento em que se processa) e aleatórias quando objetivamente a defendem, como que, se não quisessem a sua morte definitiva; porquanto o Eco (Humberto) dessa coisa, ainda é fortíssimo no meio Acadêmico das Letras e tem contaminado a avaliação lógica e verdadeira da questão.
    Todas às vezes que converso com alunos área das Letras e falo dos meus Blogs. Sou veementemente contestado quanto à questão, a qual ─ como você poderá constatar nos meus escritos ─, para mim é óbvio isto não ser como resolveram entender e proclamam.
    Conheci há quase três décadas passadas um hábil pintor, cujos quadros (lindíssimos), eram basicamente sobre o Tema paisagens. O qual reclamava de maneira tristonha do modo como eram vistas e avaliadas suas obras ─ como eu disse lindíssimas à semelhança de “fotografias vivas” em tinta; as quais, não receberam o devido reconhecimento da parte dos que as viram e analisaram. Essa decepção daquele grande pintor o levou ─ segundo o que ele me disse posteriormente ─, à medida drástica de testar àqueles que se entendem como “críticos de artes”; quando no seu atelier literalmente borrou (1) aleatoriamente algumas telas ainda em branco, com cores variadas, as assinou e as levou para serem expostas… Sucesso total a sua exposição, inclusive, vendeu todos os quadros.
    Estou contando aqui neste comentário no meu próprio Blog este fato, justamente pelo motivo de ter dito e continuar dizendo que qualquer texto escrito só pode ser entendido exatamente no que o seu autor quis dizer. Entretanto, no acontecido e aqui contado por mim; vimos e vemos em obras (de pintura), as que foram borradas aleatoriamente, o não conter nenhuma informação consciente do pintor, que os inteligentes interpretadores de plantão; interpretam (de maneira fantasiosa), gostam e compram… E isto foi e é feito nas nossas interpretações legitimamente feita para algo sem nenhum Tema, informação, nem mesmo crítica ou contestação, porquanto as pinturas foram e são em muitos casos; plenamente aleatórias (sem sentido algum), cabendo (por este motivo) as nossas abertas interpretações.
    Isto aqui informado não tem e não terá nada a ver com escritos conscientemente feito por alguém ─ uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa (perdoe o desgastado coloquial) ─, diferentemente não se produz racionalmente nenhum texto sem significado; ressalvando que há textos sobre enigmas (que têm sua exata interpretação) e parábolas idem. E se alguém, como que, borrar um texto com confusão. Machado de Assis nos diz na obra Dom Casmurro, capítulo cinqüenta e nove Convivas de Boa Memória ─ Nada se emenda nos livros confusos. Não há como penetrá-lo (abri-lo)… Explico isto com detalhes no Blog citado no estudo.
    Não assumam, por favor: ─ (em) O Nome da Rosa e de todas as flores do jardim ─, nenhuma atitude de ódio contra meus posicionamentos e sim, sincero, veemente e total confronto no discutirmos profundamente estes assuntos… Certos das vossas efetivas participações.
    Atenciosamente JORGE VIDAL

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