terça-feira, 5 de abril de 2016

Artigo de Opinião - A paternidade de Ezequiel - J.C. Guimarães

POR J. C. GUIMARÃES EM 02/02/2009 


A conclusão natural é que o retrato de Capitu que nos chega é obra dessa memória ruim e deste temperamento passional, o que há de servir à esposa de álibi contra possíveis distorções e injúrias do marido, perante o leitor 




“Dom Casmurro”, de Machado de Assis, tem 148 capítulos. Para efeito de análise literária, a última vez que o li dividi-o em oito partes, assim organizadas: o Primeiro e o II capítulos originais ficam sendo a primeira parte, ou intróito explicativo; do III ao VII temos a apresentação dos familiares do protagonista; do VIII ao X, ainda preambulares, temos a metáfora que resume a condição humana. A história propriamente inicia-se a partir do XI, e gira até o XVII em torno da suspeita de namoro dos adolescentes protagonistas. A quinta parte é o do plano dedicado a fazer com que Bentinho escape ao seminário, que vai do XVIII ao XLIII capítulos. A partir do seguinte, XLIV, começa a sexta parte, que é a da fase do seminário, e a sétima tem início no XCVIII e vai até o CXLVIII: corresponde à vida de casado. O desenlace melancólico dá-se na oitava parte, entre os capítulos CXXIII e CXLVIII. Esta é uma divisão particular, sujeita naturalmente a revisão. Serviu-me bem, todavia, para os propósitos deste ensaio, dedicado em parte a refletir sobre a paternidade de Ezequiel: filho de Bentinho ou de Escobar? 

A segunda vez que li “Dom Casmurro” tive certeza de que Capitu traíra o esposo, porém essa certeza foi por água abaixo, da última vez. Imagino hoje que o que encanta nesse livro não é a possibilidade que é dada a cada um de admitir ou negar a traição de Capitu, mediante as pistas oferecidas pelo romancista (aqui transcrevo apenas uma, a meu ver a mais séria). O que encanta e empresta gênio a esta obra é o fato de não ser convencional, isto é, não ter aquela revelação surpreendente que compensa os espíritos. Se o fizesse, Machado não cumpriria seu objetivo, que parece ser o de deixar em aberto uma questão que aparece a primeira vez no capítulo XLIV. Ninguém descobrirá o segredo de “Dom Casmurro”: sabe-o apenas Capitu. A dificuldade está em que a natureza principalmente desta e de Bentinho são tão cambiantes e indefinidas quanto a das pessoas de verdade. As criaturas de Machado são complexas como o mais simples dos seres humanos de carne e osso, para dizer o menos. Seu gênio, é sabido, não se enquadra numa escola, e isso ficou mais claro para mim, que desta vez achei-o particularmente atraído pelo impressionismo. 

O que seus heróis, Capitu e Bentinho, sugerem num capítulo negam-no às vezes no seguinte: é um permanente oscilar de dúvida e de certeza na cabeça do leitor, tantalizado por este movimento pendular em pinceladas, pode ser também, de aquarelista. É tudo vago e sugerido, fórmula que nos impede de surpreender o casalzinho, ao menos tê-lo definitivamente às mãos. Não se trata de contradição, pois Machado de Assis é suficientemente verossímil. A certa altura (Cap.XCIII), o escritor assim define o homem: “...o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes.”, sendo fiel a esta definição: e quem negaria que o que nos dá, realmente, são dois personagens que parecem respirar? Assim é que o Bentinho da primeira parte não é o da última, quando sua pureza moral esvai-se consumido pela torpeza: custa enxergar naquele homem amargo, quase assassino, o anjo de pureza e ingenuidade do começo.

Obviamente, é necessário advertir para o fato de que “Dom Casmurro” são as memórias pessoais de Bentinho, que ganhou esse apodo na velhice. É um livro narrado em primeira pessoa, isto é, uma versão. Não sabemos como seriam as memórias de Capitu, posto que a voz que ganha aqui é como a de Sócrates em Platão: um eco apenas. Quase se pode dizer, não fosse o tom acusativo, que o marido traído literalmente põe palavras na boca da esposa difamada. Não cabe no momento discutir esse problema, uma vez que Bentinho desce ás minúcias, e ninguém, na realidade – senão na ficção, parece – pode lembrar exatamente as palavras que outrem disse a cada momento ao cabo de muitos anos: seria preciso uma memória prodigiosa, exatamente o equipamento que Bentinho admite expressamente não ter:

“Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias.”, completando a seguir: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos (...). É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.” (Cap. LIX) Imagino que reclamar uma memória que não se tem e ao mesmo tempo recompor diálogos antigos em detalhes é um problema mais de teoria literária que deste romance. De qualquer modo, não é a questão que nos interessa nesse momento. Interessa que “Dom Casmurro” reconhece que seu livro é omisso e lacunoso, autorizando a interpolação de terceiros (autêntica obra aberta!). Como não bastasse essa falta grave, o narrador é extremamente emotivo, confessando-se definitivamente neste passo: 

“Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso dela [de Capitu], não continuei a sê-lo apesar do filho e dos anos. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me afligia, a mais ínfima palavra, uma insistência qualquer, muita vez só a indiferença bastava. Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, enchia-me de terror ou desconfiança.” (Cap.CXIII) 

A conclusão natural é que o retrato de Capitu que nos chega é obra dessa memória ruim e deste temperamento passional, o que há de servir à esposa de álibi contra possíveis distorções e injúrias do marido, perante o leitor. Que Bentinho tenha legado essas memórias de punho próprio é quase uma infâmia! A idiossincrasia do adolescente que termina macambúzio não é para tanto, a dela seria. (Eis outro problema mais teórico, talvez, que do próprio livro).

“Dom Casmurro” estaria bem intitulado se chamasse “Capitu”. Mesmo se aceitarmos o fato de que se trata da memora pessoal de Bentinho, com todas as possíveis incorreções morais daí decorrentes, é admissível que é ela que o arrasta pela metade da história adentro, não ele a ela. Em torno das lembranças de Bentinho giramos nós, os leitores, mas em torno dela gira ele, astro menor, sem a mesma força, gênio equivalente e presença de espírito. Quão diferentes são, em talento e temperamento, Bentinho e Capitu! Se é verdade que os pólos opostos se atraem, então tudo bem, explica-se o enlace de ambos. Caso contrário, explica-se com mais fundamento o desfecho, posto que ela é por demais centrada e racional, e ele muito disperso e emotivo. 

Ao tentar compreender o ciúme de Bentinho, à medida que fui coligindo as pistas contra e a favor da idéia de traição, percebi que era melhor resignar-me ao mistério, única coisa que afinal se descobre. Há capítulos claramente pró e contra a tese de traição, assim como há aqueles totalmente indefiníveis (dois ou três): nestes, a dissimulação de Capitu é apoteótica ou simplesmente inexistente, não é possível determinar (cito o LXV, o XCVIII, o CXII, entre outros). Não há como saber a verdade sobre este romance, nem mesmo se adotarmos um critério de abordagem. Em meu caso, parti do pressuposto de que tudo o que escreve “Dom Casmurro” é a verdade, apesar de seus esquecimentos e de seu pathos avassalador, sujeito a ver chifres em cabeça de cavalo. Objetivamente, a tese da traição tem muito mais pistas do que a outra, o que não significa que sejam mais fortes que as negativas. 

Tanto que os capítulos mais contundentes (ao menos me parece) entre todos dessa polêmica são o CVIII e o CXVII, respectivamente. Como explicar que o próprio Escobar, pai de uma menina com Sancha, tome a iniciativa de fazer a seguinte proposta ao “amigo” (grifos meus):

“Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também interrogava o futuro. Chegou a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha. A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força. Aceitei a lembrança, e propus que os encaminhássemos a este fim, pela educação igual e comum, pela infância unida e correta.”

O assunto volta à baila, depois, dele participando as mães Sancha e Capitu, nos seguintes termos (sérios demais para serem ignorados):

“Como eu observasse que podia acontecer com eles o que se dera entre mim e Capitu, acharam todos que sim, e Sancha acrescentou que até já se iam parecendo. Eu expliquei:

- Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros.

Escobar concordou comigo, e insinuou que alguma vez as crianças que se freqüentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei a cabeça, como me sucedia nas matérias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O certo é que eles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas não acabaram casados.”  

Como é possível imaginar que todos – portanto Capitu e Escobar, inclusive, únicos que teriam a chave do mistério – concordassem em unir em matrimônio dois possíveis frutos de suas entranhas? Seria concordar, consequentemente, com a possibilidade do incesto, de forma que a ausência de protesto pelos suspeitos neste caso aponta para uma única direção: Ezequiel era filho legítimo de Bentinho. Ou isso ou, pior, a perversidade no mais alto grau de Capitu e Escobar, perante suas consciências e a incerteza que naturalmente teriam, também. Não estou certo de que qualquer capítulo a favor da traição possua um argumento tão conclusivo, nem mesmo a suspeita sobre a esterilidade de Bentinho (Cap.CIV) ou as visitas – olhe a desinência, a provar que a coisa era sintomática - de Escobar à casa de Capitu (CVI e CXIII), na ausência do herói. No último caso ela diz que está doente e o marido sai; chega Escobar e em seguida o marido, a surpreendê-los novamente: a esposa já estava bem!...

Há algo mais que não merece passar batido na leitura de “Dom Casmurro”, e que, embora não sejam pistas diretas, ajudam a compor os caracteres, apontam uma direção e concorrem para formar uma imagem integral dos heróis. Assim é que, voltando às diferenças de temperamento, custa acreditar que uma moça tão equilibrada quanto Capitu se deixe seduzir tão apaixonadamente por Bentinho, amiúde lacrimoso: o rapaz chora por tudo! Ressalvada a possibilidade de anacronismo – seria aconselhável conhecer o comportamento típico da mocidade no Segundo Império -, as mesuras e graciosidades de Bentinho ante Escobar parecem indicar uma sexualidade indefinida e talvez homoerótica reprimida, reforçada talvez pela dependência acessiva a mãe. Por contraste, o próprio “Dom Casmurro” admite o seguinte: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem.” Deduz-se, portanto, que ela desejaria um homem que, embora sensível, fosse antes de tudo viril, para corresponder-lhe à feminilidade fora de questão. Daí sua admiração pelo medalhão de César: 

“Um dia Capitu quis saber quem eram as figuras da sala de visitas. O agregado disse-lho sumariamente, demorando-se um pouco mais em César, com exclamações e latins:

- César! Júlio César! Grande homem! “Tu quoque, Brute”?

Capitu não achava bonito o perfil de César, mas as ações citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para ele. Um homem que podia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma pérola de 6 milhões de sestércios!” (Cap.XXXI). 

Obviamente, este perfil sedutor nada tem a ver com Bentinho. Eis aí o arquétipo masculino ideal na cabeça de uma mulher como Capitu. Machado não escreveria esse capítulo se não fosse para extrairmos dele semelhante conclusão. E que dizer do fato de que foi sempre ela que tomou as iniciativas, e não ele? Capitu não se sentia frustrada, a exemplo de Ema Bovary, para quem o homem dos sonhos de uma mulher é o que tem as rédeas da vida na mão, conduzindo-a ao invés de se deixar levar?

Para concluir, lembro-me que José Maria e Silva, talvez o melhor ensaísta atuante na imprensa goiana, escreveu certa vez um ensaio – “O brasileiro que superou Shakespeare”, Jornal Opção, 11 a 17 de outubro de 1998 – dedicado a Machado de Assis. Infelizmente, não respondeu ao por que dessa certeza, deixando a afirmação em suspenso. Honestamente não sei se “Otelo” é obra superior ou inferior ao nosso romance – provavelmente se equivalem, o que não é pouco. Machado cita-a em particular, mais de uma vez, porém eu creio que ele condensa outras influências de Shakespeare em “Dom Casmurro”. Toda a atmosfera de encerramento do romance é trágica, servindo o autor, aliás, de referências constantes ao teatro, que era um dos recreios do casal. Como nas tragédias shakespearianas, quase todos morrem no fim, com a diferença original de que o derramamento de sangue é avesso às inclinações de Machado: este prefere o golpe da natureza ao dos homens. A sua não é nunca uma paixão que vai às últimas consequências.

Bentinho confessa que viu em “Otelo” uma “coincidência”, estimulado a assistir à sua representação, e ao fazê-lo curiosamente mimetiza Hamlet, quando este mete uma peça dentro da “peça”: ao invés de Escobar, faz ele próprio o papel de Claudio. A atmosfera final de “Dom Casmurro” assemelha-se também inegavelmente à de “MacBeth”, ao menos porque intensificam-se as referências à noite, à medida que Bentinho fica transtornado: uma das causas do adensamento final é o tempo atmosférico. É no ambiente noturno que vai ao teatro, que surpreende Escobar saindo de sua casa, que sai para espairecer etc.

Ao ler recentemente um estudo dedicado às imagens criadas pelo dramaturgo inglês – “A Imagística de Shakespeare”, de Caroline Spurgeon – surpreendeu-me outro dado interessante: “A principal imagem de “Otelo” é a de animais em ação, cada um espreitando o outro, malévolos, lascivos, cruéis ou sofredores, e por meio dessas características a sensação geral de dor e desagrado é muito ampliada e mantida constantemente diante de nós.” Não sei se o leitor de “Dom Casmurro” deu atenção ao fato de que, a partir da gravidez de Capitu, Machado faz algumas referências a rãs, cães, gatos e ratos – em particular servindo-se dos capítulos CX, CXV e CXI - tudo para criar uma atmosfera violenta ou, quando menos, sugerir a sua própria condição. Talvez a mais marcante seja a cena do gato comendo o rato, sob os olhares vibrantes de Ezequiel (o filho, não o amigo!...). A metáfora, como se vê, nunca foi figura estranha ao romance. 

Tendo ou não extraído essas sugestões imagísticas de “Otelo” – é provável que sim – fato é que “Dom Casmurro” acreditou na traição da mulher, e por isso terminou infeliz e por muitíssimo pouco bestializado pelo ciúme. Bentinho teve certeza quanto à traição de Capitu, porém não apresentou as provas cabais e objetivas de seu tormento, e sua convicção é suspeita para nós. Não temos, como leitores, a prova material para condená-la ou absorvê-la: em se tratando de “Dom Casmurro”, toda certeza é teoria. Seus juízes é que terminam sempre condenados - à dúvida perpétua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário