segunda-feira, 4 de abril de 2016

Artigo de Opinião - A tragédia das memórias - Ricardo Cravo Albin

04/04/2016 

Flagelam minha alma os esquecimentos de memórias imateriais: fatos históricos, culturais ou pessoas que ajudaram a construir o país

O DIA


Rio - ‘Mas você bate sempre na mesma tecla, sua ladainha da memória é um samba de uma nota só. Precisa tanto?’ “É isso mesmo, mas esta nota só não sou eu. A nota só, e desgraçadamente, é a falta de pudor com a preservação da memória. A gente vê se perderem coisas, e nomes, e referências...”

Este diálogo quase absurdo ocorreu quando dava uma aula magna na USP. E é claro que não me constrangeu. Ao contrário, exultei com a pergunta do aluno de Jornalismo, de aparência afoita e rebelde. Desfiei, de imediato, regalado e suspiroso, novelo sombrio do que comprovei ao longo da direção no Museu da Imagem e do Som, em seu mais tenro início de consolidação, em 1965.

Quanto mais os depoimentos para a posteridade exumavam memórias e feitos, mais pessoas me procuravam para denunciar nomes esquecidos, destruições, ou maus-tratos a coleções por parte de herdeiros desrespeitosos, ou até infames. Muitos velhinhos batiam à porta do MIS para doar livros, discos, fotos, filmes, clamando uma súplica devastadora: “Vai me doer o coração ver tudo que juntei por tantos anos ir para o lixo, quando eu me for.” Gemidos, queixas, desamparo e a certeza da destruição eram definidoras do nenhum cuidado com a memória. Tanto por parte do poder público quanto — o muitíssimo pior — a partir de herdeiros malsãos.

Esta trágica comprovação nunca se sustou em um único ano de minha espichada vida pública de mais de cinco décadas. E não falo de bens materiais tão somente. Flagelam minha alma os esquecimentos de memórias imateriais: fatos históricos, culturais ou pessoas que ajudaram a construir o país. Que puderam fazer todos nós mais felizes e orgulhos por algumas gerações. Caso dos artistas, em especial os que afinaram a arte da música. Isso para citar apenas — até temerária e parcialmente — nossos cantores, músicos e compositores. Este povo irradiador da beleza do som é vítima mais constante do esquecimento. Juro a vocês que a cada mês anoto os esquecidos. E, taciturno, vocifero baixinho o quanto perde o país em decência ao jogar embaixo do tapete gente que valerá a pena.

E para não dizer que não falei das flores: nestes últimos sete dias passaram, em brancas nuvens, os 90 anos de Luiz Reis, os 80 de Luizinho Eça e os 110 de Aracy Cortes. Pergunto: vocês sabem quem eles foram?

Ricardo Cravo Albin é presidente do Inst. Cultural Cravo Albin

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