quinta-feira, 31 de março de 2016

Crônicas do Dia - Espaços de encantamento - Luiz Antônio Simas

16/03/2016 

Eu não acredito em nenhuma transformação efetiva no Rio que desconheça as culturas do tambor

O DIA


Rio - Há quem reclame da falta de um museu da escravidão no Rio de Janeiro. Apoio a bronca e vou além: mais do que ter um museu, a cidade precisa se assumir como um memorial público da escravidão, manifesto nas esquinas, encruzilhadas, ruas, morros, montanhas e mares.

Naquilo que explicita e, sobretudo, no que silencia, pulsam no Rio os vestígios presentificados da tragédia do cativeiro e, ao mesmo tempo, a dimensão civilizatória das culturas da diáspora africana para a nossa formação.

Caladas por uma cidade oficial historicamente propensa a demolir seus lugares potenciais de memória, em constante negação do que somos e não queremos admitir, estas culturas reinventaram a vida no vazio do sincopado, sambando, ousando discursos não verbalizados e soluções originais a partir dos corpos em transe e em trânsito, em desafiadora negação da morte, solapada pelo bailado caboclo dos ancestrais que baixam em seus cavalos nas canjiras de santo.

Aqui falaram aguerés, cabulas, muzenzas, barraventos, avamunhas, satós, ijexás, ibins e adarruns. As folhas foram encantadas pelo korin-ewé que chamou Ossain, o Katendê dos bantos. Os toques do tambor são idiomas que criaram, nos cantos mais inusitados da cidade, espaços de encantamento do cotidiano: terreiros.

Muito além de ritos religiosos, nossas macumbas (sambadas, gingadas, funkeadas, carnavalizadas, dribladas na linha de fundo) traçam as tramas do diálogo com ancestrais e apontam para os corpos cariocas como assentamentos animados, gongás feitos de sangue, músculos e ossos, carregados de pulsão da vida. Não há encruzilhada da cidade que não fale disso.

Há quem prefira a cidade desencantada, aquela que não assusta por ter dispersado o seu axé, adequadamente moldada para a circulação de carros e mercadorias. Uma cidade sem o sal da memória dos dias longos e da noite grande. Daí, para mim, não sairá nada. Eu não acredito em nenhuma transformação efetiva no Rio de Janeiro que desconheça o manancial que as culturas do tambor representam e as formas desafiadoras de narrativa que elas elaboraram sobre o lugar.

Podem apostar que nas frestas, entre as gigantescas torres empresariais e arenas multiúso, os couros percurtidos continuarão cantando a vitória da vida sobre a morte no, mais do que museu, terreiro grande da Guanabara. Pairando sobre o desencanto, estejamos atentos para escutar bem, o vento que vem do mar é a gargalhada zombeteira dos exus anunciando que no meu Rio de Janeiro, a cidade-terreiro, a morte é que morreu.

E-mail: luizantoniosimas67@gmail.com

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