sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Grávida vítima de Zika deve ter direito ao aborto ?




Só é possível detectar microcefalia depois dos seis meses de gestação, quando nem países liberais permitem o aborto. A angústia da dúvida justifica interromper a gravidez?

CRISTINA GRILLO COM HELENA FONSECA



Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, por 8 votos a 2, que não é crime o aborto de fetos anencéfalos (com máformação do cérebro e do córtex, que leva o bebê à morte logo após o parto). Agora, a disparada de casos suspeitos de microcefalia relacionada ao vírus zika reacende o debate: grávidas vítimas do zika também têm direito de abortar?

Bebês com microcefalia (condição em que o cérebro não cresce o suficiente durante a gestação) são diferentes de bebês anencéfalos. A literatura médica aponta que 91% dos anencéfalos morrem até uma semana após o parto e apenas 1% sobrevive mais de três meses. Uma criança portadora de microcefalia tem melhores perspectivas de sobrevivência, mas apresentará variados níveis de deficiência, física ou mental. Há um complicador caso se decida pelo aborto: a microcefalia só pode ser detectada com segurança quando a gestação já se aproxima do sexto mês, ou após 24 semanas. Nessa fase, o bebê já está formado, a ponto de poder sobreviver fora da barriga da mãe. Há casos de sobrevivência de bebês nascidos após apenas 21 semanas de gestação. Mesmo os países com legislação mais liberal, como a Espanha, só autorizam aborto até a 14a semana. “Propor o aborto como solução a uma grávida quando se faz o diagnóstico de microcefalia é negar a ela o o amparo de que realmente necessita”, afirma Lenise Garcia, coordenadora do curso de biologia da Universidade de Brasília (UnB).

Professora da mesma universidade e pesquisadora de bioética, Debora Diniz faz parte de um grupo que pretende pedir ao STF a extensão às mulheres contaminadas com o vírus zika do direito de interromper a gravidez sem correr o risco de pegar até três anos de reclusão, previstos no Código Penal. Ao impedir a interrupção da gravidez, afirma Debora, o Estado as lança “em situação de extremo desamparo”. “Manter a gestação pode ser uma tortura psicológica, uma situação na qual ela não sabe o que virá pela frente. Há uma situação de estado de necessidade, na qual a mulher passa por um intenso sofrimento”, diz (leia o artigo de Debora Diniz na página 56). Debora pedirá que mulheres que apresentam sintomas de zika tenham assegurado o direito ao PCR, exame de sangue que pode detectar a presença do vírus. A partir do resultado, poderiam decidir o que fazer. Mas estudos mostram que o PCR só é eficaz quando feito na primeira semana da doença.

Grupos contra o aborto se articulam para a lei ficar como está. No site de campanhas on-line Citizen Go, a petição “OMS: não instrumentalize o zika vírus para promover o aborto” obteve mais de 30 mil assinaturas de apoio nos três primeiros dias. “A criança com microcefalia tem uma patologia gravíssima, é um peso terrível para a família, mas me parece que peso maior é matar essa criança”, diz Paulo Silveira Martins Leão Junior, procurador do Estado do Rio de Janeiro e presidente da União dos Juristas Católicos da Arquidiocese do Rio (leia o artigo de Lenise Garcia).


Após liberar o aborto de anencéfalos, o STF deve ser chamado a decidir sobre casos de microcefalia
O Artigo 24 do Código Penal prevê três situações em que alguém acusado de crime escapa de sofrer sanções: legítima defesa, cumprimento do dever legal e “estado de necessidade”. Considera-se em “estado de necessidade” a pessoa que comete um crime “para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”. Esse argumento tem sido usado para a obtenção de autorização judicial para aborto ou a anulação de sanções em países com legislação mais conservadora como as Filipinas e o Chile.

Na Grã-Bretanha, nas décadas de 1940 e 1950, uma epidemia de rubéola levou muitas mulheres a abortar ilegalmente, temerosas de uma série de sequelas no bebê, entre elas a microcefalia. “Não havia como prever se o vírus atingiria o feto, nem a magnitude dos problemas que podiam ser causados” , diz a bióloga Ilana Löwy, pesquisadora do Cermes3, um centro de pesquisa na França. “Médicos britânicos se arriscaram à prisão por achar que a mulher devia decidir o futuro de sua gestação.” Uma década depois, o aborto foi legalizado. No Brasil, a discussão se anuncia longa – a ação dos anencéfalos tramitou durante oito anos –, delicada e dolorosa para as famílias.



SIM 


O escândalo não deve ser o direito ao aborto em caso de zika, mas a negligência do Estado brasileiro em enfrentar a epidemia. A conversa precisa ganhar contornos justos, e o mais importante deles é reconhecer que as mulheres estão desamparadas pela incapacidade do Estado de eliminar o mosquito. Não podemos nos confundir agora, pois falar em direito ao aborto parece provocar um novo pânico. Direito ao aborto é só uma das formas de proteger as necessidades de saúde das mulheres em uma tragédia epidêmica. E não há nada de eugenia aqui, uma palavra que perturba pelo passado de terror e pelo prenúncio de discriminação injusta.

Segundo a OMS, “o nível de alarme é extremamente alto” para os riscos de má-formação no feto causada pelo zika. O conjunto de variações etiológicas do feto é descrito como “microcefalia”, mas estamos diante de um novo quadro clínico ainda a ser descrito. Para cuidar dessa metamorfose epidêmica, é preciso um pacote amplo de proteções aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: a) acesso irrestrito aos métodos contraceptivos; b) teste para o zika em rotina de pré-natal; c) possibilidade do aborto legal em caso de testagem positiva ao zika. Para as mulheres infectadas pelo zika que não desejarem o aborto, deve haver pré-natal com cuidados específicos. Repito: sabemos pouco sobre os efeitos do zika em mulheres grávidas.

Não há nada que se assemelhe à eugenia aqui. O Estado não impõe às mulheres o aborto. Ao contrário, há uma grave violação à saúde pela vivência da gravidez em tempo de epidemia: direito ao aborto ou cuidados precoces são duas maneiras de amparar as mulheres grávidas. Um estado democrático de direito reconhecerá essa diversidade de escolhas: as mulheres nem serão forçadas a manter-se grávidas sob riscos ainda desconhecidos a sua saúde e a de seu futuro filho, tampouco serão forçadas a abortar. Um Estado eugênico não reconhece o direito à autonomia da vontade, pois é um regime político totalitário de gestão da vida.

Mas há outra razão para afugentarmos o fantasma da eugenia desta conversa. A epidemia fez crescer o número de crianças com deficiência em regiões pobres do Brasil – por isso, medidas de proteção social que respeitem o novo marco constitucional da pessoa portadora de deficiência devem ser urgentemente adotadas. Não há isso de “geração de sequelados”, como disse o ministro da Saúde. Menos ainda a solução de um salário mínimo para as famílias com crianças afetadas pelo zika: um Estado social forte não se resume à transferência de renda no limite da pobreza. A verdade é que não há incompatibilidade de agendas para o enfrentamento da epidemia: movimentos de mulheres e de pessoas com deficiência devem andar lado a lado. São as mulheres as principais vítimas da epidemia, e são as mulheres as cuidadoras das crianças com deficiência. Cabe a elas a escolha sobre seu projeto de vida e de família, especialmente em um momento dramático como uma epidemia.

* Debora Diniz é doutora em antropologia, professora de Direito da UnB e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética

NÃO 

Mães e pais de crianças com deficiência passam por momentos duros e difíceis, por grandes desafios, e também por alegrias talvez não percebidas por outros pais, a cada pequeno progresso, a cada passo, a cada vitória diante de um objetivo cotidiano. A jornalista Ana Carolina Cáceres, portadora de microcefalia, relata de forma emocionante seus primeiros passos, para ir atrás de um cachorro. O que terá passado pela mente e pelo coração de seu pai, quando testemunhou o fato? Ele tinha ouvido os médicos dizerem que ela não sobreviveria.

Por outro lado, mulheres que fizeram aborto, especialmente nos casos de alguma má-formação, vivem na dúvida: como seria agora meu filho? Como teria se desenvolvido? Sim, porque essa mulher tem um filho. Morto, mas filho.

A meu ver, este é um dos grandes equívocos nos argumentos para a liberação do aborto: tratar o filho abortado como se ele fosse inexistente, como se fosse possível “cancelar” uma gravidez. Toda mulher que tenha perdido um filho em um aborto espontâneo conhece a dor dessa perda, e precisa trabalhá-la, como fazemos diante de todos os nossos seres queridos que se foram. Não se pode considerar que seja diferente quando o aborto é induzido, provocado pela própria mãe ou por sua solicitação. Nesse caso, há o agravante da culpa, da responsabilidade pela morte do próprio filho. O aborto pode tirar a criança do útero de sua mãe, mas não a tira da sua mente nem do coração.

No caso da microcefalia, há o agravante de que o diagnóstico é tardio, a partir do sexto mês da gestação. Ou seja, estamos falando de uma criança já capaz de sobreviver fora do útero, em muitos casos.

O argumento da “liberdade de escolha” também é equivocado. À maior interessada, que é a criança, não é dada a liberdade de escolher entre  sua vida e sua morte. A vida é o primeiro de todos os direitos, e nenhum outro pode existir sem ele. Não pode caber a outrem a decisão sobre a vida de cada um de nós. Além disso, à escolha da mãe também faltam elementos para que possa ser considerada verdadeiramente livre. Na maior parte das vezes, o aborto é um ato de desespero, de aflição, de alguém que “não vê outra saída”. São inúmeros os exemplos de mulheres que pensam em abortar, mas que desistem quando são ouvidas, ajudadas, acolhidas. Propor o aborto como solução a uma grávida quando se faz o diagnóstico de microcefalia é negar a ela o amparo de que realmente necessita.

Um aspecto particularmente nefasto do aborto eugênico – aquele que ocorre porque o filho em gestação não é “perfeito” – é a carga de preconceito que o fundamenta. Estaríamos negando a dignidade da vida de crianças deficientes, vistas como alguém que não deveria estar vivo porque representa um peso para sua família e para a sociedade. Crianças com deficiência merecem ser acolhidas, cuidadas, amadas. Fazem a diferença em suas famílias, contribuindo para que tenhamos um mundo melhor.

* Lenise Garcia é doutora em microbiologia e coordenadora do curso de biologia da UnB

Revista Época

Nenhum comentário:

Postar um comentário