segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Fernando Pessoa e o Cinema

PEDRO JOSÉ BARROS, DE LISBOA


Se você pensa que a obra de Fernando Pessoa já não pode surpreendê-lo, ai, pense de novo. Patricio Ferrari e Claudia J. Fischer mergulharam no oceânico espólio do escritor português e trouxeram à tona documentos que comprovam o interesse de Pessoa pela sétima arte. Essa ligação não seria a de um cinéfilo, mas é visível na poesia, na correspondência, em apontamentos soltos e na escrita de argumentos.
O livro Argumentos para Filmes (lançado em Portugal pelo selo Ática, do grupo Babel), que os editores dão a conhecer nesta entrevista à CULT, reúne todo esse material e mostra também a faceta comercial pessoana, latente em projetos como a empresa Cosmopolis e a produtora Ecce Film. Pessoa queria afirmar Portugal, mas também não se esqueceu da “propaganda da boa literatura e arte brasileira na Europa”.

O grupo Babel prevê que o livro – segundo da nova série das obras de Fernando Pessoa, coordenada por Jerónimo Pizarro – saia em 2012 no Brasil, onde deverão ser lançados ainda Provérbios Portugueses e Associações Secretas e Outros Escritos, da mesma coleção.
CULT – O baú artístico de Fernando Pessoa parece não ter fundo…
Claudia Fischer – É verdade. São à volta de 30 mil papéis, e muitos documentos ainda não estão publicados. Isso se deve a uma escrita muito tortuosa, muito difícil de decifrar. Pessoa implica muito tempo de dedicação à leitura do espólio inteiro porque textos relacionados com determinados temas não estão todos guardados no mesmo envelope.
Patricio Ferrari – A biblioteca particular de Pessoa envolve mais de 1.300 títulos – entre livros, jornais e revistas –, onde estão representadas nove línguas.
Como foi a organização deste livro?
Fischer – Primeiro se encontra um ou outro documento ligado ao cinema, e isso já desperta uma ideia. Depois fizemos uma busca sistemática de tudo o que tivesse a ver com cinema e partimos para a investigação das ligações para fora do espólio.
Ao encontrarmos o logotipo que Fernando Pessoa criou, da Ecce Film, associado a uma casa, a Rua de São Bento 333-335, a investigação nos levou a esse local. Não deu resultados imediatos porque agora estão lá um consultório de acupuntura e umas obras. Há também um clube de ginástica que tem um campo de basquetebol no piso superior. É um hangar gigantesco mas nada fazia criar uma ligação com o cinema.
A investigação nos levou aos arquivos municipais de Lisboa. Solicitamos os dossiês das obras e chegamos ao que queríamos. Foi um momento de grande emoção quando pudemos abrir o projeto arquitetônico desse hangar onde agora se joga basquetebol, mas onde antes se filmava. Daí saíram muitos filmes, especialmente documentários.
O que este livro oferece de novo em relação a Courts-Métrages, de Patrick Quillier?
Fischer – Esta é uma edição crítica: além de apresentar os documentos e a transcrição, há notas genéticas que descrevem os documentos na totalidade. Outra diferença é que traz mais argumentos. Os dois primeiros que colocamos, Note for a Silly Thriller or a Film e Note for a Thriller, or Film, que se desenrolam em barcos, nunca tinham sido publicados.
Os outros quatro já tinham sido publicados em Courts-Métrages: dois no original, em francês, e os outros dois em tradução francesa [os originais estão em inglês]. Publicamos todos no original com a respectiva tradução para o português.
Outra grande diferença é o trabalho que está na introdução e nos anexos, toda uma quantidade de documentos relacionados com cinema: referências à poesia em Álvaro de Campos, apontamentos, correspondência na qual se faz menção ao cinema e todas as referências a cinema que estão na biblioteca particular [em livros e alguns ensaios, como On the Movies, de Chesterton], além das referências que estão nos periódicos que guardou [artigos e filmes em exibição].
Ferrari – Mas talvez a grande diferença é que mostramos as duas vertentes de Pessoa ligadas à Rua de São Bento e que são inexistentes na versão do Patrick: a documental e a ficcional.
Encontraram muita informação sobre o interesse de Pessoa pelo cinema?
Fischer – Não se pode dizer que seja muita, comparando-se com o que escreveu sobre literatura, sociologia, política mundial ou associações secretas. Não queremos vender a ideia de que ele era um cinéfilo. Não, mas ponderou obviamente a possibilidade de “fazer pela vida” (para usar o título de Mega Ferreira numa de suas edições sobre os inventos de Pessoa e seus projetos), provavelmente levando esses argumentos ao cinema. Portanto aqui havia uma perspectiva talvez mais comercial.
Por outro lado, quando pondera sobre se cinema é uma arte, como vemos nos textos de Erostratus, reconhece que pode haver arte no cinema russo e no alemão, mas proscreve completamente o cinema hollywoodiano, que cria mitos completamente efêmeros, em sua opinião.
Que diretores e atores mais apreciava?
Fischer – Se tivéssemos encontrado alguma coisa sobre isso, teríamos referido. Por exemplo, ele se interessou muito por astrologia e tirou de uma revista uma carta astrológica de Joan Crawford, fazendo anotações. Agora, se estava interessando em Joan Crawford ou naquele mapa astrológico em particular, não podemos afirmar. Há referências a atores como Mary Pickford, Joan Crawford e Rodolfo Valentino porque eram os mais badalados àquela altura, mas aparecem com conotação negativa, associada a um estrelato de curta duração e que interessa às massas.
Os argumentos foram escritos antes do aparecimento do som?
Fischer – Tentamos datá-los e parecem coincidir mais com os anos 1920, numa altura em que o cinema era mudo. Tenho a impressão de que o cinema mudo lhe terá interessado como uma forma de atualizar a pura ação, sem a palavra. Imagino que Fernando Pessoa possa ter experimentado por aí.
Podemos pensar no teatro que Pessoa escreveu. A única peça que publicou em vida foi O Marinheiro, que ele considerava teatro estático, sem ação, composto só de palavras e de sensações – é levar o teatro ao extremo da não ação e por isso até não tem atos, mas quadros.
Essas experiências de cinema são um pouco o outro extremo, a não palavra e a pura ação, a comunicação meramente por meio do visual e do movimento do corpo. Os dois textos franceses revelam muito bem essa postura da descrição de ações sem o recurso à palavra:
“Quero sair, não tenho sapatos / encontro os sapatos debaixo do seat / ponho os sapatos”; “(…) usa um bigode que antes não usava”; “Vou com ele até à janela”, entre outros.
Vejo essas marcas visuais e a renúncia à palavra como uma experiência que ele terá tentado explorar.
De que forma a ligação ao cinema influenciou sua obra poética?
Fischer – Em nossa opinião, Álvaro de Campos – também pelo fato de ter aquela fase futurista, de ser o que está mais aberto às inovações tecnológicas da época, de ser engenheiro naval e uma pessoa ligada ao estrangeiro, a Inglaterra – é o único heterônimo em que encontramos referência explícita à cinematografia.
Mas também estilisticamente, por meio da aceleração própria do futurismo dele e da poesia extremamente visual: do deambular pelas cidades e da sucessão de imagens que ele próprio compara ao cinema.
O paralelismo com Álvaro de Campos é visível até no fato de dois dos argumentos se desenrolarem em navios.
Fischer – Também estabelecemos essa possível ligação. Opiário também se desenvolve num navio. O navio assume grande importância mesmo na biografia de Fernando Pessoa: com 6 anos vai para um mundo completamente diferente, na África do Sul, a bordo de um grande navio. E depois ainda vem duas vezes a Portugal, também de navio, tendo feito a travessia duas vezes sozinho.
Os argumentos foram escritos quase na íntegra em inglês e francês, o que pressupõe que Pessoa gostaria de vê-los sob produção estrangeira. Concordam?
Ferrari – Concordo, mas não totalmente. Quando Pessoa lê em determinada língua, quase automaticamente vai escrever nessa língua. Acho que os argumentos dos barcos estão ligados às leituras que fazia das “detective stories”. Ele não lia “detective stories” em português. Em sua biblioteca particular constavam livros de Conan Doyle, Anthony Berkeley, Austin Richard Freeman, S. S. Van Dine, entre outros. Chegou a vender numerosos livros de Conan Doyle. Conservou também uma antologia editada por Dorothy Sayers, intitulada Great Short Stories of Detection, Mystery and Horror, de 1928.
Seja qual for a área, nunca podemos esquecer o fato de Pessoa ter sido um grande leitor. Não podemos nunca pensar na parte comercial ou mesmo na parte poética sem integrar sua biblioteca no argumento.
Nos argumentos está subentendida a ideia de perseguição “frustrada” a joias, ídolos e até à própria noção de identidade. Essa busca impossível não é, em si, muito pessoana?
Ferrari – Não sei até que ponto, nos dois argumentos ingleses [que acontecem em barcos] temos mesmo uma trama que podíamos chamar de cunho pessoano. Encontro mais um cunho pessoano em The Three Floors, em The Multiple Nobleman, ao nível da multiplicidade de personalidades e da heteronímia. Pessoa levou a heteronímia ao extremo, mas a diferença de personagens e a troca de personalidades eram tratadas na literatura dos anos 1920.
Fischer – Num dos argumentos no barco também há personagens que se fazem passar por outros. É um tópico um pouco transversal a vários.
A ideia do ator que encarna um personagem agradaria a um adepto da heteronímia?
Ferrari – Penso que sim. Pessoa aplicou, por exemplo, o horóscopo a cada um dos heterônimos. Cada heterônimo tinha seu universo literário, filosófico e estilo. Também tinha escrito que pensava numa imagem para cada um deles. Portanto, a ideia de dar uma cara a esses heterônimos já existia fora do cinema e dentro de sua obra heteronímica.
Fischer – E ele próprio dizia que, antes de mais nada, era um dramaturgo. Portanto, nem precisamos ir ao cinema, pois no teatro já temos essa multiplicação dos personagens.
O que mais surpreendeu vocês neste trabalho?
Ferrari – Surpreenderam-me duas coisas: a primeira foi ninguém ter publicado isso antes. A grande surpresa foi ver como tudo isso teria sido idealizado por meio de um mesmo espaço físico verdadeiro em Lisboa, na Rua de São Bento, muito perto da casa de Fernando Pessoa.
Foi muito bom saber que isso ainda existe e ver como, a partir da produtiva década de 1910, ele estava pensando fazer dinheiro de outra forma. Pensou no cinema de duas maneiras diferentes: na parte documental (ligada à Cosmopolis e ao Grémio) e na parte ficcional (ligada à produtora Ecce Film). E isso num dos principais espaços onde se fazia cinema em Lisboa, e o mais avançado em termos de tecnologia – o que confirma que estava muito ao corrente das novidades artísticas e ligado a elas.
Fischer – Nesse lugar da Rua de São Bento funcionou a Lusitania Film, que depois foi trespassada à Portugalia Film. Pessoa estava atento a essas mudanças e idealizou que a sede da sua Ecce Film pudesse ser ali porque estavam ali as infraestruturas. Da Ecce Film, a única coisa que temos é a visualização do logotipo que ele próprio criou e a ideia da sede, mas não há descrição da Ecce Film por escrito.
Em que consistia a Cosmopolis?
Ferrari – Era um megaprojeto de Pessoa no qual o cinema entrava, mas um cinema documental, não comercial. A Cosmopolis tinha muitas atividades, que podiam ir da fotografia a edições etc.
Fischer – Ele pensava na Cosmopolis como um substituto da Sociedade de Propaganda de Portugal, que existia na época e que ele considerava inexistente, inepta, ineficaz. A Cosmopolis não avançou e parte de sua função foi agregada ao Grémio de Cultura Portuguesa, orientado para desenvolver “um estado cultural portuguez independentemente do Estado”, afirmar e “favorecer Portugal” comercialmente.
Ferrari – Sim, mas a preocupação com a grandeza de Portugal passa por diferentes áreas: do comércio à poesia. Quando ele traduz Antero de Quental ou pensa publicar os provérbios em Londres, está a pensar em promover Portugal.
O Grémio também deveria fazer “propaganda da boa literatura e arte brasileira na Europa” e “prevenir a desnacionalização cultural do Brasil”, por exemplo. Pessoa estava atento ao que se passava no Brasil nessa área?
Ferrari – Sabemos, por exemplo, que a revista Orpheu teve uma parte de sua gênese no Brasil (destinava-se aos escritores de Portugal e do Brasil). E teve dois colaboradores brasileiros – Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães. Na biblioteca particular constam, por outro lado, obras oferecidas por José Osório de Oliveira, como Literatura Brasileira e Espelho do Brasil.
Poderíamos ainda falar, entre outros, de livros como Os Sentidos e a Emoção Nalguns Poetas Portuguezes e Brasileiros, de António Maria de Bettencourt Rodrigues, e de um número da revista de arte e pensamento Terra de Sol, editada no Rio de Janeiro.
Fischer – Penso que há aqui matéria para ser investigada, sem dúvida, mas não podemos adiantar conclusões.
Claudia Fischer é pesquisadora no Centro de Estudos Comparatistas na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde também leciona literatura alemã (no Departamento de Estudos Germanísticos).
Patricio Ferrari tem mestrado em literatura comparada pela Universidade de Sorbonne, em Paris, e conclui doutorado em linguística portuguesa na Universidade de Lisboa. Desenvolve trabalho em torno da biblioteca, do arquivo e do espólio de Fernando Pessoa.
A entrevista foi feita na casa de Claudia Fischer. Ferrari, que está em Londres no momento, participou via Skype.

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