sábado, 20 de fevereiro de 2016

Crônicas do Dia - Literatura Policial no Brasil I e II - Raphael Montes

O gênero policial é um dos mais populares no mundo. Com frequência, obras de mistério estão na lista de mais vendidos. Nos Estados Unidos e na Europa, há centenas de feiras voltadas para o gênero, há prêmios para romances publicados e para inéditos, além de associações de autores, clubes de leitura, revistas especializadas e grandes seções exclusivamente dedicadas a policiais. O que acontece nas bandas de cá?


Nas próximas colunas, buscarei fazer uma análise completa da trajetória da literatura policial no Brasil até os dias de hoje. Ao que consta, a narrativa policial brasileira tem data de nascimento: 20 de março de 1920. Chamava-se “O mistério” e foi publicada em folhetim pelo jornal “A Folha”, escrita a oito mãos por Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Medeiros e Albuquerque e Viriato Corrêa. Na época, a história de 47 capítulos fez um sucesso tremendo, tendo sido posteriormente publicada em formato de livro. A ideia de fazer um romance folhetinesco veio de Medeiros e Albuquerque, entusiasta da literatura policial, influenciado sem dúvida pelos folhetins que lançaram autores como Edgar Allan Poe décadas antes. Medeiros e Albuquerque publicou outros dois livros de contos policiais, “O assassinato do general” e “Se eu fosse Sherlock Holmes”.

A partir daí, vários autores se aventuraram no gênero; alguns com afinco, outros com certa vergonha. Imperava (como ainda impera) por aqui certa noção de que literatura policial é subliteratura. Na década de 1930, apareceu Jerônimo Monteiro, autor de novelas policiais, que se escondia por trás de um pseudônimo estrangeiro para alcançar melhor fama: Ronnie Wells escrevia as histórias do detetive Dick Peter, publicado pela Edições e Publicações do Brasil. É o primeiro escritor brasileiro a criar um detetive que aparece em mais de um livro.

Nesta fase inicial da literatura policial no Brasil, o autor de maior destaque é mesmo Luiz Lopes Coelho. Em seus três livros de contos, facilmente encontráveis em sebos, o autor cria o primeiro detetive efetivamente nacional na ficção policial brasileira: o doutor Leite. Vale a pena procurá-los: “A morte no envelope” (1957), “O homem que matava quadros” (1961) e “A ideia de matar Belina” (1968). A brasilidade nos contos mostra os primeiros traços do que pode ser a ficção policial nacional.

Também nesta época, entre as décadas de 1960 e 1980, fazia sucesso o Teatro de Mistério, na Rádio Nacional, escrito por Hélio do Soveral, cujo personagem principal era o Inspetor Marques e, depois, Inspetor Santos, da Polícia Judiciária. Escritor e radialista, Soveral publicou dezenas de livros que se tornaram muito populares nas décadas de 1970 e 1980. Usou os pseudônimos Alexeya Slovenskaia Rubenitch, Allan Doyle, Clarence Mason, Ell Sov, Frank Rougler, Gedeão Maureira, Hélio do Soveral, Irani de Castro, John Key, K.O. Durban, Louis Brent, Luís de Santiago, Maruí Martins, Sigmund Gunther, Stanley Goldwin, Tony Manhattan, Yago Avenir dos Santos, W. Tell. Como me confidenciou um leitor desta coluna: “Era um seriado que prendia os adultos e pré-adolescentes. Nas noites de segunda-feira, todos sintonizados na Rádio Nacional, dez da noite, em nossa casa no escuro do quarto de minha mãe”.

Em países periféricos, é comum que o enredo das narrativas policiais seja pretexto para uma análise da sociedade, um instrumento de reflexão das relações de poder. Ao mesmo tempo, há autores que buscam tramas mais universais, com foco na arquitetura da trama, ainda sem perder de vista a identidade brasileira. De um modo ou de outro, a força das investidas não foi suficiente para emplacar uma “escola brasileira de policial”.

Entre as obras mais relevantes desta época estão “O escaravelho do diabo”, publicado em 1956, por Lúcia Machado de Almeida, e outros dois livros também compostos a muitas mãos, ao estilo de “O mistério”; são eles: “O homem das três cicatrizes” (publicado no suplemento “Letras e Artes” do jornal “A Manhã” em 1949) e “O mistério dos MMM” (escrito por autores de peso, como Viriato Corrêa, Dinah Silveira de Queiroz, Lucio Cardoso, Herberto Salles, Jorge Amado, João Condé, Guimarães Rosa, Antônio Callado, Orígenes Lessa e Rachel de Queiroz).

Para conhecer mais deste período, indico duas obras: “O mundo emocionante do romance policial” (Francisco Alves Editora), de Paulo de Medeiros e Albuquerque, que no capítulo 15 faz um panorama da literatura policial brasileira da época, e “Literatura policial brasileira” (Jorge Zahar Editor), de Sandra Reimão.

Estudiosos defendem que a literatura de mistério dialoga diretamente com o romance urbano e, por isso, a frágil presença do gênero em nossa tradição literária se deve à tardia formação das grandes cidades. Há certa pertinência no argumento. Num país de dimensões continentais como o nosso, é uma pena que seja tão difícil encontrar uma narrativa detetivesca que não se situe no Rio ou em São Paulo. Na próxima coluna, vamos avançar pelas décadas de 1970 e 1980 para conhecer os autores que investiram no gênero nestes anos, sem ainda fazer decolar uma escola de literatura policial brasileira e, quem sabe nesta investigação, cheguemos finalmente ao culpado do crime.

II


Na coluna da semana passada, comecei a traçar um perfil da literatura policial escrita no Brasil ao longo dos anos. Apesar de apontar algumas publicações avulsas entre as décadas de 1920 e 1970, é certo que a literatura policial brasileira não teve nenhum autor com força e representatividade suficientes para criar uma identidade nacional do gênero policialesco — à exceção de Luiz Lopes Coelho, que criou o primeiro detetive nacional. Nesse período, foram mais felizes dois segmentos específicos da literatura policial, quais sejam, o romance policial juvenil e o romance policial baseado em histórias verídicas.

Ali pelos anos 1950, Lúcia Machado de Almeida publicou “O caso da borboleta Atíria”, com tiragem elevada. A este, seguiu-se “O escaravelho do diabo”, que, pelo que soube, chegará aos cinemas em 2016. Depois, muitas aventuras de suspense para jovens integraram a Coleção Jovens do Mundo Todo, da editora Brasiliense. Clarice Lispector, já muito respeitada, publicou o infantil “O mistério do coelho pensante”, em 1976. Na seara dos crimes-verdade, destaque especial para José Louzeiro, que publicou clássicos como “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” (1975) e “Aracelli, meu amor” (1977), e Aguinaldo Silva, que escreveu os ótimos “República dos assassinos” (1976) e “A história de Lili Carabina” (1983), entre outros.

É curioso que a literatura policial tenha dado seu primeiro passo efetivo através dos livros juvenis e dos de crime-verdade. Na ficção adulta, tão popular em todo o mundo, parece não ser tão fácil encaixar a realidade brasileira. Segundo me parece, a imagem desgastada da polícia brasileira e a descrença na eficiência de nossos sistemas penal e judiciário dificultam a criação de heróis tradicionais, com valores firmes de justiça e ordem social. Como ter um detetive que busca zelar pela paz social quando a sociedade já vive cotidianamente num caos?

Por isso, muitos autores brasileiros optam por romances protagonizados por detetives particulares ou escrevem uma espécie de romance policial “sem polícia”. Como veremos, são raros os exemplos de romances policiais protagonizados por um oficial da lei.

Não bastasse, por muitos anos, a literatura policial era considerada subliteratura, ignorada pelos acadêmicos, estudiosos e críticos da grande imprensa. Assumir-se “escritor policial” era algo menor, mero autor de entretenimento. Com isso, muitos escritores simpáticos ao gênero evitavam ser taxados como tal. Décadas depois, o cenário mudou, mas infelizmente tamanha imbecilidade de que literatura de gênero é “subliteratura” continua a percorrer as salas de aula de certas universidades brasileiras.

Nas décadas de 1970 e 1980, merecem destaque algumas antologias publicadas, como “Os melhores contos de crime e mistério”, uma seleção da “Revista Ficção”, nº 23; “Chame o ladrão — contos policiais brasileiros”, organizada por Moacir Amâncio e, claro, a “Mistério Magazine Ellery Queen”, com autores brasileiros como Amazonas de Oliveira, Carlos Cesar Soares, Carlos Newton, Luiz Tadeo, Nadja Bandeira, Plínio Cabral, Victor Giudice, Vitto Santos e Wilma Guimarães Rosa.

Também nesse período, importantes autores investiram no gênero, ainda que optando pelo pastiche. Paulo Medeiros e Albuquerque publicou “Uma ideia do Dr. Watson” (1977) e Luis Fernando Verissimo veio com seu “Ed Mort e outras histórias”. Vejo com certa ressalva a paródia sobre um gênero não estabelecido, mas não restam dúvidas de que foram publicações importantes para a literatura policial nacional.

Ao longo desses anos, um escritor marginalizado, assumidamente de gênero, escreveu centenas de livros policiais, de suspense e de terror. É o “papa da pulp fiction” Rubens Francisco Lucchetti, mais conhecido como R. F. Lucchetti, que agora vem tendo parte de sua obra merecidamente reeditada. Como roteirista, Rubens trabalhou em alguns filmes de Zé do Caixão; na literatura, vale buscar seu romance “O caso da gaiola dourada” (1979).

E, finalmente, chegamos a uma publicação que sacudiu as estruturas do romance policial brasileiro. Em 1983, Rubem Fonseca publica “A grande arte”, seu primeiro romance policial. O autor já apresentara traços do gênero em “O caso Morel” e em alguns contos anteriores. Mais tarde, com sua linguagem seca e sua violência realista, Rubem brindaria os leitores com “Bufo & Spallanzani”, o que deu fôlego e inspiração às gerações seguintes, que colocaram a literatura policial brasileira em um novo patamar. Fica para a coluna da semana que vem.

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