quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

"Não" para os clichês

Alteridade indígena e africana ainda é pouco conhecida pelos professores e retratada de forma superficial nos livros didáticos

Danielle Bastos Lopes


Quem são os índios do Brasil? Quais são nossas heranças africanas? Estas perguntas fervilham no meio acadêmico e nas escolas desde a aprovação da obrigatoriedade do ensino de culturas indígenas e africanas.

Como ensinar o que não se conhece? De acordo com dados divulgados pelo IBGE em 2010, mais da metade da população brasileira jamais teve contato presencial com qualquer aldeia indígena e ignora que muitas delas estão localizadas perto dos centros urbanos, e não somente no norte do país. Em relação aos negros, a escravidão é analisada e estudada, mas há pouca atenção para os descendentes dos quilombos. Estima-se que haja atualmente 1.700 comunidades remanescentes de quilombolas distribuídas pelo país, o que poderia tornar seu legado cultural mais próximo das instituições de ensino.

Muitos professores não tiveram acesso, em seus cursos de graduação, a disciplinas sobre o ensino de história da África ou das culturas indígenas brasileiras. E os cursos intitulados de“formação continuada” não suprem essa defasagem: constituem-se, na maioria das vezes, em encontros de curta duração, apresentados sob a forma de palestras ou conferências.

No ir e vir entre aldeias espalhadas por diferentes cantos do país, tive a oportunidade de conhecer e conviver com índios que transitam entre aldeias e o mundo do juruá (“não índio” na língua guarani mbyá). Muitos são professores, advogados e escritores que frequentaram “nossas” escolas e universidades. Ao compartilhar dessas conversas em beira de estrada, ao pé de fogueiras ou nos centros urbanos, os professores indígenas trazem no discurso a preocupação com a educação, sobretudo com a representação de suas culturas no ensino de história. O professor guarani Algemiro Poty, que leciona na Escola Kyringue Yvotyty, na aldeia Sapukaí, Angra dos Reis (RJ) é um deles: “Eu penso em uma escola que represente a realidade da vida, que fale da situação da comunidade, que fale que esta terra é nossa, que o branco não descobriu, mas invadiu. Tenho 45 anos, e somente agora que sou professor indígena da minha comunidade é que sei que Cabral não descobriu o Brasil, ele roubou”, desabafa.

Entre os terreiros de umbanda e candomblé, a principal dificuldade concentra-se no receio de um professor, aluno ou diretor de escola que seja praticante da religião assumir suas crenças e práticas no ambiente escolar. A abordagem religiosa é um dos tabus a serem discutidos quando falamos em África. Pode ser extremamente conflituosa se não houver meios para um aprofundamento teórico.

Além da religiosidade povoam outros matizes pouco tratados em sala de aula.  O jongo, também conhecido como caxambu e corimá, é um deles. Estima-se que foi trazido para o Brasil pelos bantos, difuso ainda hoje em áreas quilombolas, como o popular “jongo da Serrinha” em Madureira, no Rio de Janeiro, ou no quilombo de São José, cidade de Parati (RJ). Outro aspecto pouco abordado é a etnomatemática, que analisa as práticas matemáticas de acordo com os contextos culturais. Povos indígenas, alguns países africanos, comunidades caiçaras, entre outros grupos e sociedades, têm sua própria forma de organização intelectual e difusão do conhecimento adquirido.

A maior parte dos livros didáticos possuem algumas características comuns na forma de apresentar a história de negros e índios no Brasil. A primeira é o chamado “congelamento das culturas”. Apesar de geralmente valorizarem a diversidade da formação nacional, essas publicações quase sempre relegam as contribuições dos índios e dos negros a um passado pouco problematizado. O indígena é correntemente o “selvagem e bravo”, com seus cocares, arcos e flechas, enquanto o negro é o “escravo que joga capoeira”.

Outro problema é o caráter genérico como esses grupos são retratados. A denominação “índio” oculta uma diversidade de mais de 230 povos com culturas, crenças e hábitos diferentes entre si. Das 188 línguas existentes no Brasil, apenas 10% foram estudadas e catalogadas. Tradicionalmente o currículo escolar de história considera as diferenças de identidade entre os europeus que passaram a residir em território brasileiro no período colonial: portugueses, espanhóis, franceses, entre outros. Como então é possível ainda encontrar referências a “escravos africanos”? Este termo reproduz acriticamente o tratamento subumano a que os negros eram submetidos, tratados como mercadoria sem alteridade. O ensino de história herda o dever de ressaltar a pluralidade de povos vindos daquele continente, como os bantos e sudaneses – estes incluindo grupos diversos como os yorubás, nagôs, gegês, ewes e haussás, entre outras relações étnicas. São legados culturais complexos e diversificados, o que torna a proposta de um ensino de história da África desafiadora e ao mesmo tempo estimulante.

Equívoco semelhante é constatar nos livros didáticos a permanência da concepção de culturas “atrasadas”, “primitivas” ou pouco desenvolvidas em relação às sociedades ocidentais. Trata-se de uma compreensão de desenvolvimento centrada em referenciais urbanos e contemporâneos. Uma maloca de índio ou um casebre quilombola é exposto e ensinado como algo primitivo, uma vez que o parâmetro de desenvolvimento dominante é o das grandes cidades com grandes prédios. Entre os indígenas é comum o uso de cocares e pinturas de jenipapo, mas vale questionar, junto aos alunos, a ideia de “atraso”, relacionando tais práticas com o uso de maquiagem e bijuterias pelas mulheres da cidade, por exemplo.

Além disso, as culturas não vivem isoladas. Muitos índios usam roupas urbanas como calças e tênis, assistem à televisão e cursam universidades. Há outras dimensões culturais com as quais estes povos realizam trocas ora artísticas, ora tecnológicas, influenciando e sendo influenciados com o passar dos séculos.

No litoral e no interior do país, existem grupos indígenas especialistas em solos, plantas, rios, colheitas, remédios e rituais, mas “o preconceito não nos tem permitido usufruir desse legado cultural acumulado durante milênios”, como afirma o linguista José Bessa. Um exemplo prático e curioso sobre as perdas da sociedade devido a essa desvalorização cultural é o caso de Itaorna, uma praia em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro. Na área, na década de 1970, começou a ser construída a Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto. Por ignorar a língua indígena, os engenheiros responsáveis não tinham conhecimento de que o nome Itaorna, dado pelos Tupinambás, continha uma preciosa informação sobre a estrutura do solo, minado por águas pluviais que provocavam deslizamentos de terra das encostas da Serra do Mar. Só em fevereiro de 1985, quando fortes chuvas destruíram o Laboratório de Radioecologia, que mede a contaminação do ar na região, descobriu-se que Itaorna quer dizer pedra podre. [Ver RHBN no 100]

Apesar da perda de informação e do pouco espaço para aprofundamento teórico, alguns livros de história produzidos nos últimos dez anos têm sido mais generosos ao retratar a “história dos vencidos”. Nas coleções “Sempre Negro” organizada pelo NEAB (Núcleo de Estudos Afro-brasileiro da UERJ) publicada em junho de 2007; ou na obra “Aldeamentos Indígenas no Rio de Janeiro” reeditada em 2009 pela Eduerj ; além da avolumada quantia de literaturas inscritas pela organização de autores indígenas como Eliane Potiguara, Daniel Mundurucu entre outros dispostas nos endereço “escritoresindigenas.blogspot.com.br” há mais informações atualizadas sobre a história do negro, do índio e do conceito de cultura.

Em uma perspectiva otimista, amplia-se a discussão no meio acadêmico e surgem novas propostas para o ensino desses temas. Também cresce o número de historiadores e outros pesquisadores interessados no aprofundamento de tais estudos. São investimentos que podem surtir efeito na sala de aula nas próximas décadas.



Danielle Bastos Lopes é pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coautora do livro Diálogos Interculturais Currículo e Educação: experiências e pesquisas anti-racistas com crianças da educação básica (Quartet, 2009).



Passado no presente



Para o trabalho em sala de aula, pode ser proveitoso associar passado e contemporaneidade, trazendo formas de abordagens mais interativas. Uma boa opção é o estudo comparativo entre imagens de índios e negros no período colonial e imagens mais recentes. O reconhecimento da localização antiga de quilombos e aldeias pode ser confrontado com a localização das comunidades atuais, o que permite a análise de variados aspectos, como a distância ou proximidade e as alterações de significados culturais ocorridas nesses novos espaços. Assim se aprende sobre transformações, movimento e disputas culturais de um grupo ou comunidade. 

Por todo o Brasil estão espalhadas informações sobre lugares, rios, plantas e animais, sem falar em ruas e bairros das cidades, escritos nas línguas indígenas e africanas. Em nosso vocabulário utilizamos palavras como jenipapo, jiboia e maracujá. O conteúdo semântico e histórico dessas palavras pode ser explorado em aula, evocando contextos de uma localidade e ensinando saberes transmitidos durante séculos, e muitas vezes não percebidos.

Sites como Pró-Índio Uerj (www.proindiouerj.blogspot.com.br), produzido pelo professor José Ribamar Bessa Freire, Escritores Indígenas (escritoresindigenas.blogspot.com.br), Portal das Memórias de África e do Oriente (memoria-africa.ua.pt), do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Faculdade de Educação da Uerj (www.neab.uerj.br) e o da escritora Eliane Potiguara (elianepotiguara.blogspot.com.br) oferecem indicações bibliográficas e diversos materiais, como fotografias, vídeos e entrevistas, tornando mais dinâmico e fácil o acesso a novas informações.



Saiba Mais - Bibliografia



D`AMBROSIO, Ubiratan.Etnomatemática. Rio de Janeiro: Ed. Ática, 2001.

FREIRE, José Ribamar Bessa. Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

LIMA.A.G, OLIVEIRA.L.LINS, M. DiálogosInterculturais Currículo e Educação: experiências e pesquisas antirracistas com crianças da educação básica. Rio de Janeiro.Quartet,2009.

NOGUERA, Renato. Era uma vez no Egito. Porto Alegre: Evangraf, 2013.

________________. O Ensino de Filosofia e a lei 10.639. Rio de Janeiro: Ceap, 2011.

Nenhum comentário:

Postar um comentário