quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Crônicas do Dia - O ano e os dias - Fred Coelho

Enquanto o vento veloz da História nos carrega para a frente, insistimos em olhar para trás


Enquanto escrevo estas linhas, estou na véspera de completar 41 anos. Enquanto você lê estas linhas (no tempo dilatado entre a escrita e a leitura), eu já tenho 41 anos. Amanhã é 31, o ano finda, e fazer aniversário nos últimos dias de um ciclo completo sempre nos lembra o anjo de Paul Klee e Walter Benjamin: enquanto o vento veloz da História nos carrega para a frente, insistimos em olhar para trás. Seja para reter o que passou, seja para lembrar o que nunca mais voltará.

Atravessar 2015 com 40 anos e uma coluna por semana foi como ficar de olhos abertos e cheios de cimento, fumaça e maresia e não conseguir piscar. As semanas não deram descanso, os dias não terminaram nem quando o escuro da noite encerrava nossas ambições. Foram tempos em que agudos histéricos cortaram vozes, furaram olhos, morderam línguas (será que ficaremos para sempre mirando a miséria dos fatos quando esse ano for lembrança?). O jambeiro vermelho, os livros, as ruas, os discos, tudo foi tragado em uma espiral cujas bordas foram a indignação com o que não dá mais na cidade que nos assusta e nos mesmeriza. Mas os shows ainda salvam vidas, os amigos reunidos ainda lembram o que importa entre abraços largos e bebidas, o mar, mesmo sujo, ainda limpa feridas. E, ao olharmos no atacado dos meses, percebemos que a única coisa que importa de verdade é o varejo dos dias.

A História inventa períodos e nos impõe calendários, e assim marcamos 365 dias como um ciclo natural das coisas. O aniversário define essa volta no relógio, mas os poemas desarrumam tudo. O poema suspende a História (o poema é o varejo dos dias), recusa os prêmios, salva vidas. Nesse ano que finda, poemas atravessaram as semanas em que precisei escrever sobre o delírio das coisas. No livro “Escuta”, Eucanaã Ferraz me disse que “só o que chamamos de absurdo/ parece dar a tudo algum sentido”. E, quando não soube o que falar sobre o que paralisa, li Paulo Scott (no livro “Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo”) e me apeguei a uma única frase no final de um poema, frase que sintetiza aquilo que importa (arrisco a dizer, o que realmente importa). Uma frase para repetir sem fim, porque a luz brota a esmo e nunca amanhecemos os mesmos: “Estamos vencendo, amor”.

No varejo dos dias, nas migalhas das horas, estamos vencendo, amor. Contra o quê, qual partida, que disputa, não sabemos, nunca saberemos. Só o que chamamos de absurdo dá sentido ao trajeto. “Voltar à vida, mesmo que doa”, diz de novo Scott. Mesmo que doa. Falar do mundo em uma grande angular, seguir o ciclo do calendário, narrar sua história pelos tempos contados de um aniversário depois do outro, o que importa? Outro poeta, Sylvio Fraga, arremata com um verso de seu livro “Cardume” aquilo que talvez seja um lema para todos os dias: “nosso umbigo é apenas uma cicatriz”. Meu centro não é uma bússola, minha vida não é o mais importante, e sim o que faço com ela. Mesmo que doa.

Amanhã, dia 31, você estará sorrindo pelo que vem? Estará no abraço de quem ama? Estará sozinho e inteiro, entendendo que a solidão não é a derrota, mas sim a conquista de si mesmo? Amanhã, na hora em que o ponteiro grudar no 12, que o tempo parar para recomeçar, você estará ouvindo a música certa? Estará dormindo, pois os filhos pequenos demandam o silêncio? Estará correndo pela praia, sem destino, atrás da lua e do gosto de sal? E onde estarão os que perderam tudo? Seja onde e como for, por minutos esqueceremos que corpos foram afogados na lama, foram fuzilados por uma polícia que mata e humilha os seus jovens mais abandonados. Esqueceremos que nos enlutamos pelos naufrágios dos imigrantes, que nos maltratamos demais por nossa raiva contra todos. Por minutos.

O que termina sempre aponta um outro começo. Qual, não sabemos. Eis o fosso que assusta e cativa, eis o que nos faz ter o mínimo de sanidade para seguir no que nunca muda e sempre será diferente. Cantemos como mantra a frase de John Cage: “indo em diferentes direções, a gente consegue, em vez de separação, um sentido de espaço”. Para os que se separaram em diferentes direções, para os que perderam quem amava, para os que descobriram a vida nos olhos da criança que nasceu e cresce, para os que estão com os pés enfiados na areia com a brisa escorregando em seu corpo, para os que estão abrindo a janela de uma nova casa ou de um novo amor, para os que estão esmagados por tudo que nos mata aos poucos, para os que sabem que podem mais, para os que sabem que podem menos, para os que nasceram de novo, para os que olham os dias passarem entre poeiras, raios de sol e pequenos diamantes escondidos nos dentes das horas, para os que leram essas colunas que larguei por aqui durante o ano como garrafas no mar, que o próximo ano continue a dar e tirar o que não tem razão nem nunca terá. Sigamos.

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