sábado, 26 de dezembro de 2015

Crônicas do Dia - O analfabeto e a professora - Stanislaw Ponte Preta



Foi quando abriram a escolinha para alfabetização de adultos, ali no Catumbi, que a Ioná resolveu colaborar. Essas coisas funcionam muito na base da boa vontade, porque alfabetizar adultos nunca preocupou muito o governo. No Brasil, geralmente, quando o camarada chega a um posto governamental, acha logo que todos os problemas estão resolvidos, sem perceber que - ao ocupar o posto - os problemas que ele resolveu foram os dele e não os do País. Mas isto deixa pra lá. 


Eu falava no caso da Ioná. Quando inauguraram o curso de alfabetização de adultos no Catumbi, os beneméritos fundadores andaram catando gente pra ensinar, e entre os catados estava um padre que era muito bonzinho e muito amigo da família da Ioná. O piedoso sacerdote sabia que ela tinha um curso de professora tirado na PUC, e só não professorava porque tinha ficado noiva. Mas depois - isto eu estou contando pra vocês porque todo mundo sabe, portanto não é fofoca não - a Ioná desmanchou o noivado. Ela era uma moça moderna e via que o casamento não ia dar certo; o noivo era muito quadrado, embora para certas coisas fosse redondíssimo.

Enfim, a Ioná tinha o curso mas não usava pra nada, e aí o Padre perguntou se ela não queria ser também professora do Curso de Alfabetização de Adultos do Catumbi. Ela topou a coisa, e as aulas começaram. 

No início eram poucos alunos, mas depois houve muito analfabeto interessado, e o curso se tornou bem mais animado. Uns dizem que esse aumento de interesse foi por causa da administração bem-feita, outros - mais realistas, talvez - acharam que o aumento de interesse foi por causa da Ioná, que também era muito bem-feita. 

Professora certinha tava ali. Tamanho universal, sempre risonha, corpinho firme, muito afável, e um palmo de rosto que a gente olhando de repente lembrava muito a Cláudia Cardinali. Além disso, ela ensinava mesmo. Seus alunos, para impressioná-la, caprichavam nos estudos, e sua turma tornou-se em pouco tempo a mais adiantada de todas. 

Só um aluno era o fim da picada, sujeito burro e duro de cabeça. Era um rapaz até muito bem apessoado, alto, louro, que trabalhava numa fábrica de tecidos. Chamava-se Rogério, era esforçado, educado, mas não conseguia ler a letra "o" escrita num papel. A turma se adiantando e ele ficando para trás. Ioná tinha pena dele, mas não sabia mais o que fazer, até que uma noite (os cursos eram noturnos) ela fez ver ao Rogério que assim não podia ser, e ele ficou tão triste que a Ioná sentiu pena e perguntou se ele não queria que ela lhe desse umas aulas particulares. 

- Seria bom, sim - ele falou. E, então, sempre que terminavam as aulas, aluno e professora seguiam para a casa desta, para repassarem os estudos da noite. Era um caso curioso o desse aluno, que se mostrava tão esperto, tão comunicativo, mas que não conseguia vencer as lições da cartilha. O livro aberto na frente dele e ele sem saber se foi Eva quem viu a uva ou se foi vovô que viu o ovo. 

Mas, justiça se faça, com as aulas particulares Rogério melhorou um pouquinho. Não o suficiente para acompanhar o adiantamento da turma, mas - pelo menos - já soletrava mais ou menos. 

Nesta altura o CAAC - Curso de Alfabetização de Adultos do Catumbi - já progredira a ponto de se tornar uma escola oficializada, e a Ioná estava tão interessada no Rogério que tinha noite até que ele ficava pra dormir. 

Quando chegou o dia das provas e iam lá o inspetor de ensino e outras autoridades pedagógicas, Ioná foi informada do evento e ficou nervosíssima. Disse para o seu aluno favorito que era preciso dar um jeito, que ele ia ser a vergonha da turma, etc. Ele pegou e falou pra ela que pra decorar era bonzinho e, se ela fosse lendo para ele, decoraria tudo. 

Claro que a Ioná não levou muita fé no arranjo, mas como era o único, aceitou. Na noite das provas o Rogério esteve brilhante e parecia mesmo que decorara aquilo tudo. Ela ficou orgulhosíssima e, mais tarde, já em casa, enquanto desabotoava o vestido, perguntou:

- Puxa, como é que você conseguiu decorar aquilo tudo, querido, tendo trabalhado na fábrica o dia inteiro? 

- Eu não trabalhei não. Eu telefonei para o meu pai e disse que não ia. 

- O quê??? Seu pai é o presidente da fábrica?

- E eu sou o vice. 

- Ela ficou besta: - Quer dizer que você já sabia ler... escrever...

- Desde os cinco anos, neguinha!

(Stanislaw Ponte Preta - FEBEAPÁ 1,2 e 3)

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