sábado, 16 de novembro de 2019

Um apólogo - um olhar crítico

Gustavo Atallah Haun[1]

1. INTRODUÇÃO

O apólogo  escrito pelo Bruxo do Cosme Velho, Um Apólogo, é considerada uma das mais lidas e atuais de sua lavra. O texto simples, escrito na década 80, do século XIX, traz um recorte interessante da sociedade da época e muitas inovações do ponto de vista narrativo.

1.1 O INUSITADO FOCO NARRATIVO

Se a base de todos os textos de caráter narrativo é o narrador, sem ele naturalmente não há estória, Machado de Assis (doravante MA) faz uso de um narrador que no princípio é onisciente: “Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:” (1º§).
Os leitores de Um Apólogo, no entanto, podem se deparar com elementos do tipo: “Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa” (16º§, grifos nossos), indicando aí uma participação ou, no mínimo, uma intromissão do foco narrativo.
Da mesma forma, acontece no penúltimo parágrafo (23º§, grifos nossos): Contei esta história (...)”, e só então é percebido que a estória toda fora narrada a outra pessoa – um emblemático professor de melancolia –, tratando-se de uma mescla entre o que está sendo narrado no tempo psicológico (narração-onisciente) e no tempo cronológico (narração-participante ou intromissão do narrador).
Não bastasse essas inovações, MA faz uso de um narrador irônico, no pequeno trecho: “(...) entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética.” (16º§). Como crítico do romantismo que era na fase realista, Machado distrai os leitores com uma intromissão do narrador, citando a deusa grega, com seus cães caçadores, para criar uma imagem que representasse a costureira em ação, com a agulha e a linha. “Somente” para dar ao texto uma tonalidade poética, já que estava muito crua, muito fanfarrona, muito desgastada com o atrito das duas personagens principais até então. Ironia à parte, o fragmento também se configura como uma intromissão do narrador.

1.2 OS PEQUENOS-GRANDES PERSONAGENS

O texto machadiano apresenta dois personagens principais logo no primeiro parágrafo sem, contudo, indicar se há protagonismo e antagonismo. Na verdade, o novelo de linha e a agulha são anti-heróis: os dois brigam, disputam, duelam por vaidade, por orgulho, por mero egoísmo, o que faz a natureza de ambos serem semelhantes e suspeitas.
Se do ponto de vista da importância eles são principais, a caracterização dos dois é plana ou linear, já que não há complexidade, mistério, transformações dos personagens ao longo da trama. Talvez a agulha, por no fim se dar mal e se sentir humilhada, poder-se-ia caracterizá-la como uma personagem esférica ou redonda, mas ao ler o conto percebe-se que a natureza dela não é mudada. A impressão é que o orgulho e a vaidade permanecem, apesar de tudo.
Os demais atores são todos secundários e igualmente planos: baronesa(16º§), costureira(16º§), modista(16º§), alfinete(21º§) e professor de melancolia(23º§).

1.3 O EQUÍVOCO DO TEMPO

A um leitor despreparado o texto camufla o tempo em cronológico e somente no fim ele se mostra, aos que percebem, como psicológico.
Inicialmente o tempo da estória não se mostra, nunca se saberá a época em que ela se passa, mas é de suspeitar que seja uma época de gala, de muita pompa e riqueza, já que são retratados fatos da casa de uma baronesa, que frequenta bailes e dança com ministros e diplomatas.
Já o tempo cronológico é marcado na seguinte passagem:

“(...) Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se.” (18º e 19º§, grifos nossos)

Assim fica delimitado o lapso temporal, em torno de quatro, cinco dias, passa-se toda a fábula machadiana.
Detalhe para a ironia “acabou a obra”: será que Machado está comparando um simples vestido de baile a uma obra artística? Ou quem sabe ao trabalho manual digno de uma artista?
E, então, somente é revelada a verdade para os leitores na penúltima parte, quando tudo parece solucionado:

“Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!”(23º e 24º§)

Está resolvido o quebra-cabeça. O narrador da fábula estava contado uma estória ao simbólico “professor de melancolia” (nos dias atuais seria professor de depressão), e este se identificou com a narrativa. Conclusão: tudo se passa na memória e na imaginação do agora narrador-personagem secundário, só desvendado no final, ou seja, a estória toda é em tempo psicológico.

1.4 OS ESPAÇOS DA AÇÃO

O espaço reduzido da trama, que inclusive já foi citado acima, não tem muita importância, nem descrições pormenorizadas, cuidado especial, etc. Fica-se sabendo do lugar em que tudo ocorre nas passagens: “(...) quando a costureira chegou à casa da baronesa. (...) em casa de uma baronesa” (16º§, grifos nossos) e também: “E era tudo silêncio na saleta de costura” (18º§, grifos nossos).
Há uma amostragem, embora superficial, do castigo imposto à perdedora da intriga, que indica o espaço em que habitará futuramente a agulha: “(...) enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?” (21º§, grifos nossos). Isso pode refletir o nada que a espera, o espaço adequado à sua desimportância no mundo.

1.5 O ENREDO ENTRELAÇADO

Como um verdadeiro bruxo, misturando todas as suas essências em um mesmo caldeirão, MA inova também no enredo, na espinha dorsal do seu texto curto, fazendo uma mistura entre a estrutura narrativa denominada clássica.
A apresentação do texto é feita no primeiro parágrafo (“Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha”) e aí os distraídos pensam que ela acabou. Ledo engano.
Há uma intercalação da complicação, feita do 2º ao 15º parágrafos, quando a agulha e o novelo de linha entram em atrito. Notadamente essa parte é feita em discursos diretos, tirando do narrador toda a ação ou pensamentos que pudessem desviar dos objetivos do momento.
Então, como se nada mais se esperasse, eis que retorna a apresentação, continuando o que seria a introdução (indicação dos personagens, do tempo, do espaço, na situação inicial):

“Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:” (16º§)

Dessa forma, há um breve retorno também à complicação, quando a agulha retoma o debate, tentando irritar a linha:

“— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...” (17º§)

A linha ficou quieta para não dar corda aos devaneios daquela, e as duas seguiram os seus trabalhos e o tempo foi passando.
Só então o leitor é elevado ao clímax da fábula (19º ao 22º), quando o narrador revela todo o suspense, toda a expectativa: a agora importante linha vai ao baile dançar com ministros e diplomatas, enfeitando a sua dona, e a agulha, humilhada, é consolada pelo alfinete de cabeça grande e não menor experiência, indo parar no cestinho das aias.
Por fim, o desfecho é feito nos dois últimos parágrafos (23º e 24º), em tempo cronológico, retomando a realidade ente o narrador e o professor de melancolia.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto supracitado, escrito em pleno século XIX, para uma época afrancesada, chamada de belle époque, é uma crítica mordaz aos costumes, à superficialidade e ao estilo de vida já naqueles tempos idos.
Através de objetos inanimados, Machado cria a sua fabuleta incorporando atos humanos, ou desumanos como queiram, fazendo a todos enxergarem a condição precária do homem: egoísta, vaidoso, orgulhoso, prepotente.
Ao leitor superficial, nada parecerá mais do que uma briga entre uma agulha e um novelo de linha pelos fatores acima descritos, uma querendo ser mais importante do que a outra.
Já ao leitor mais crítico, afeito aos textos complexos, verá particularidades de vidas marcadas por bajuladores, aproveitadores, seres parasitas que se esfalfam com o trabalho alheio e, claro, ficam com todos os créditos, com todos os louros.
Esse tal “professor de melancolia” representa uma figura altamente imagética no conto: um ser que ensina tristeza, que é mestre em depressão, que é catedrático em nostalgia e em se dar mal, ser passado para trás. Ele tem servido de agulha (de desbravador, de aventureiro, de lutador, embora arrogante e querendo reconhecimento) a muita linha ordinária, ou seja, àqueles que montam nas costas dos pioneiros para realizar a labuta mais ínfima, mais fácil, e, no entanto, levar toda a glória.
Quantos não se veem assim nas empresas, nos cargos públicos, em todas as áreas da atualidade?
Machado de Assis de ontem se mostra, acima de tudo, um sensível visionário da alma humana, mesquinha e medíocre ainda hoje, em meados do século XXI.
  
3. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


ASSIS, MACHADO DE. Para Gostar de Ler - Volume 9 – Contos. Editora Ática: São Paulo, 1984. P. 59.

CARA, Salete de Almeida. Machado de Assis nos anos 1870: A Preparação do Romance Realista. In: O Bruxo do Cosme Velho. Machado de Assis no Espelho. São Paulo: Alameda, 2004. P. 29 a 49.

GANCHO, Cândida Vilares. Como Analisar Narrativas. Série Princípios. São Paulo: Editora Ática, 1991.

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os Leitores de Machado de Assis. O romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19. São Paulo: Edusp. P. 138 a 147.

MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Machado de Assis. In: Prosa de Ficção (De 1870 a 1920). [SR]

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