domingo, 9 de junho de 2019

Você sabia disso ? - Governos preferem encarcerar do que investir no combate à criminalidade, mostra levantamento


Segundo estudo, por mês o estado de São Paulo gasta R$ 76 milhões com presos provisórios
Aline Ribeiro
09/05/2019 

Já estava escuro quando o pedreiro Francisco Carvalho Santos, de 60 anos, deixou o apartamento onde fazia bico de pintor, numa segunda-feira de agosto do ano passado. Apesar do problema no joelho, herança de uma pancada que levou ainda jovem numa partida de futebol, voltava para casa caminhando, para economizar o dinheiro do ônibus. No meio do caminho, foi parado por uma viatura das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, e se viu sob a mira de seis agentes armados. Santos foi acusado de roubar duas vezes, em junho e julho, com arma de fogo, um posto de gasolina — um total de R$ 778 em dinheiro vivo, dois celulares, um anel (R$ 25) e um relógio (R$ 80). Ficou meses em prisão provisória pelos supostos crimes e, no julgamento, foi condenado a sete anos e nove meses, a serem cumpridos em regime semiaberto — regime que permite ao sentenciado sair para trabalhar durante o dia e voltar à prisão só para dormir.

Santos é analfabeto, pedreiro e não tem renda fixa. Vive com a mulher e um dos quatro filhos numa casa de quarto e cozinha — o banheiro é compartilhado com outros moradores da vila. As despesas da casa são pagas, na maioria, com o salário de empregada doméstica da companheira. Assim que foi algemado naquela noite de agosto, os policiais fizeram uma foto de seu rosto e a levaram até o posto de gasolina. Dois frentistas e o responsável pelo caixa disseram tê-lo reconhecido pela imagem. O método fere a determinação de reconhecimento pessoal prevista pelo Código Penal. Segundo a lei, o suspeito deve ser colocado ao lado de outras pessoas parecidas, mas só depois de a vítima e a testemunha o descreverem às autoridades. Os funcionários do posto disseram que as câmeras de segurança do estabelecimento tinham filmado o rosto de Santos, mas nunca apresentaram as gravações à Justiça. No boletim de ocorrência consta que o assaltante tinha 1,80 metro, cabelo liso e cor parda — Santos tem 1,73 metro, cabelo enrolado e é negro. Embora tivesse direito de cumprir a sentença no semiaberto, Santos passou sete meses e 24 dias atrás das grades em tempo integral. Em março, um desembargador determinou sua liberdade provisória para verificar possíveis incongruências alegadas pela defesa.

O caso de Santos é só um de muitos. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão ligado ao governo federal, quatro entre dez brasileiros que respondem a processos estando presos não são, mais tarde, condenados a penas privativas de liberdade. A Justiça demora tanto a dar uma sentença que, quando o juiz a anuncia, o preso já ficou mais tempo atrás das grades do que determina a pena. Sem contar os casos em que a polícia prende inocentes e a Justiça demora a soltá-los. Ambas as situações são exemplos de injustiças e de desperdício de dinheiro público.


Um levantamento inédito feito pelo Instituto Sou da Paz, em parceria com a Defensoria Pública de São Paulo, calculou o custo dos presos provisórios para o estado de São Paulo em comparação aos investimentos em políticas públicas voltadas à redução da criminalidade e da violência. Por mês, custam R$ 76 milhões aos cofres públicos. A partir da leitura do estudo, conclui-se que os investimentos são mais voltados a prisões — muitas vezes, abusivas ou desnecessárias — do que a políticas de prevenção.

“A prisão provisória tem sido usada no lugar de outras medidas cautelares, como o uso de tornozeleira eletrônica e a restrição de direitos”, afirmou Ivan Marques, diretor executivo do Sou da Paz. “Há uma predileção dos juízes pelo encarceramento. Numa situação brasileira em que há superpopulação prisional, o levantamento joga luz sobre a necessidade de adotar outras soluções.” Há um temor de que, se passar no Congresso, o pacote anticrime do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, amplie a população carcerária brasileira, hoje a terceira maior do mundo. Críticos dizem que o projeto reduzirá direitos e endurecerá penas.

“‘HÁ UMA PREDILEÇÃO DOS JUÍZES PELO ENCARCERAMENTO. NUMA SITUAÇÃO DE SUPERPOPULAÇÃO PRISIONAL, É PRECISO ADOTAR OUTRAS SOLUÇÕES’, DISSE IVAN MARQUES, DO INSTITUTO SOU DA PAZ”

Um terço da população carcerária do Brasil está em São Paulo. Dos 236 mil presos no estado, 58 mil — o equivalente a um quarto — estão em prisão provisória. Muitos deles cometeram crimes com baixo potencial ofensivo, como o furto de um xampu ou de pequenas quantias de dinheiro, mas permanecem na cadeia para além da pena por uma combinação de inquéritos policiais mal conduzidos — como aparentemente aconteceu com Santos — e burocracia judiciária. Não se trata de uma regra. Há situações em que a prisão provisória é essencial para não atrapalhar o curso da investigação e para evitar a continuidade da prática delitiva. Há exemplos nesse sentido na Operação Lava Jato. Na visão do Ministério Público Federal (MPF), é o caso do ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), João Vaccari Neto, preso preventivamente desde abril de 2015. Vaccari é apontado como principal operador petista de propinas no esquema de corrupção da Petrobras. Acumula 45 anos e seis meses de prisão em penas a partir de cinco sentenças. Mesmo tendo sido absolvido na segunda instância em alguns deles, Vaccari continua preso.

Com 704 mil presos no sistema penitenciário, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo; desse total, 36% são presos provisórios. Foto: Marlene Bergamo / Folhapress
Com 704 mil presos no sistema penitenciário, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo; desse total, 36% são presos provisórios. Foto: Marlene Bergamo / Folhapress
O estudo do Instituto Sou da Paz mapeou os indicadores de três bairros de São Paulo: Jardim Ângela e Brasilândia, locais de alta vulnerabilidade social, e Freguesia do Ó, mais estruturado. Os dados revelam uma convergência entre os distritos de origem dos detentos provisórios e as regiões da cidade com os piores indicadores socioeconômicos — as taxas de encarceramento tendem a cair à medida que a vulnerabilidade social diminui. “No fundo, a pesquisa mostra a grande inversão de valores que gera despesa para o bolso do contribuinte. Em vez de focar em programas de prevenção de crime e violência para o jovem, a sociedade brasileira tem dado prioridade aos investimentos em prisões”, disse Marques. “Por isso a importância de fortalecer as audiências de custódia em São Paulo, que devem continuar sendo realizadas no prazo de 24 horas e presencialmente.” As audiências de custódia, em geral, evitam injustiças ao definir o destino do preso em flagrante imediatamente depois da prática do crime.

Em 2016, o número de presos provisórios da Brasilândia e do Jardim Ângela foi o dobro da média da capital. Nesses bairros, a proporção de analfabetos acima de 15 anos gira em torno do dobro da municipal. Com duração média de cinco meses, as prisões provisórias dos 672 indivíduos oriundos desses distritos custaram R$ 4,1 milhões aos cofres públicos paulistas, mostrou o levantamento. A cifra é maior que o valor anual do programa Jovem Cidadão, que oferece oportunidades de inserção no mercado de trabalho para jovens no estado.


O perfil do preso provisório em São Paulo foi um dos temas do levantamento. Ele é homem, negro e jovem — mais da metade tem entre 18 e 29 anos. Segundo o estudo, crimes não violentos representaram 22,2% das infrações cometidas na Freguesia do Ó, 16,5% na Brasilândia e 12,4% das praticadas no Jardim Ângela. Um total de 13% dos 753 presos dos três distritos foi detido por crimes com pena máxima de quatro anos, como furto tentado, receptação simples, posse ou porte ilegal de arma de uso permitido e abandono de incapaz.

Na noite em que foi abordado pelos policiais na rua, Santos foi levado de camburão até o posto de gasolina. Disse ter visto quando os agentes levaram a fotografia dele para os frentistas reconhecerem. Os PMs depois foram até sua casa em busca de alguma prova que o incriminasse — não encontraram nada. “Naquele momento, não fiquei com medo, porque não devia nada para ninguém. A ficha de minha família inteira é limpa, meus impostos estavam todos pagos”, disse ele numa manhã desta semana, em sua casa.

“SE PASSAR NO CONGRESSO, O PACOTE ANTICRIME DO MINISTRO SERGIO MORO DEVERÁ AMPLIAR AINDA MAIS A POPULAÇÃO CARCERÁRIA BRASILEIRA, HOJE A TERCEIRA MAIOR DO MUNDO”

Depois que foi reconhecido e preso, Santos passou por cinco centros de detenção provisória. No último deles, dividiu uma cela superlotada com outros 56 presos. Sua mulher, Cosmiranda Rocha dos Santos, de 50 anos, contou que ficou 38 dias sem conseguir vê-lo. Perdeu dias de trabalho correndo atrás de advogado, documentos e imagens de câmeras de segurança na tentativa de provar a inocência do marido. “Perdi muito mais que as diárias e o dinheiro. Perdi meu equilíbrio emocional”, desabafou Cosmiranda.


Santos está tratando um câncer de cólon e disse que, na cadeia, não foi levado às sessões de quimioterapia por quatro semanas consecutivas. Cosmiranda teve de correr atrás dos remédios para que ele continuasse o tratamento dentro da prisão. Em liberdade desde 29 de março, Santos aguarda uma nova decisão judicial que determinará se voltará ou não para o que chama de “calabouço”. Além de tentar obter as imagens do posto de gasolina, sua defesa quer que o juiz considere no processo vídeos de câmeras de segurança de um prédio ao lado da casa de Santos. Segundo sua advogada, Débora Nachmanowicz, as imagens mostram um senhor manco saindo e entrando da vila nas datas e horários dos assaltos ao posto de gasolina. “Se ele tivesse mesmo cometido esses crimes, não estaríamos desesperadamente pedindo as imagens para mostrar a inocência”, disse a advogada de Santos.

Revista Época 

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