terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Artigo de Opinião - Amor aos livros. E a elas - Flávia Oliveira

O amigo ajudava a organizar a pequena biblioteca por nome de autor. Teve a ideia de reunir homens numa prateleira, mulheres em outra. De um lado sobraram obras, de outro faltaram. “Homens escrevem mais que mulheres?”, indagou. Se escrevem, há dúvida. Certamente publicam mais que elas, especialmente ficção. Brancos também são hegemônicos. A pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004”, coordenada por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), é precisa. Foram analisadas 258 obras de 165 escritores; homens assinaram três de cada quatro livros (72,7%); brancos, nove em dez (93,9%). É por isso que Conceição Evaristo — recusada pela Academia Brasileira de Letras (ABL), imortalizada por uma legião de fãs neste ano da graça de 2018 — costuma dizer que, para uma mulher negra, escrever é ato político, publicar, revolucionário.


Assim, há que se festejar a escolha de “O crime do Cais do Valongo”, de Eliana Alves Cruz, como uma das melhores obras de 2018 pelos críticos do GLOBO. E Djamilla Ribeiro ter sido finalista do Prêmio Jabuti, o mais importante do país, com “O que é lugar de fala?”, obra inaugural da série Feminismos Plurais, que já pôs na rua livros de Joice Berth, Juliana Borges e Carla Akotirene. E o lançamento do selo Sueli Carneiro com “Escritos de uma vida”, seleção de artigos da filósofa e ativista que dá nome à linha.

Celebremos Helena Theodoro ter publicado “Martinho da Vila — Reflexos no espelho”, resultado de 30 anos de pesquisas e entrevistas sobre o cantor, compositor e escritor. E Vilma Piedade escriturar “Dororidade”, conceito que define o sofrimento das mulheres negras pelo machismo e pelo racismo. E Renata Souza, deputada estadual eleita, transformar no livro “Cria da favela” sua tese de doutorado. E também Mirians, Márcias, Élikas, Heloísas, Reginas, Déboras, Hildetes, Sílvias, Cristinas, Cecílias, mulheres que transportaram para o papel suas histórias reais ou imaginárias.

Logo depois que as livrarias Cultura e Saraiva (os dois principais canais de vendas de livros do país) entraram em recuperação judicial, o presidente da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, convocou brasileiros a presentearem com livros neste Natal. O apelo para evitar o colapso das editoras comoveu o país. A carta varreu redes sociais; intelectuais abraçaram a ideia; celebridades e comuns atracaram-se às edições favoritas em fotos e vídeos.

O engajamento deixou um par de lições. Primeiro, ratificou a carga emocional presente nas decisões de consumo. É provável que, mesmo não sendo leitores vorazes, brasileiros sensibilizados tenham substituído outros produtos por livros nas listas de presente. A psicologia social ensina que motivações de compra sofrem influência das relações de afeto com mercadorias, serviços ou marcas. Ou seja, empatia vende. E vice-versa.

Outro aprendizado foi a demanda por representatividade. Muitas mulheres recomendaram deliberadamente livros de autoria feminina. Indicavam, ao mesmo tempo, produto e conceito. O que o poder político brasileiro com sua confraria de homens brancos — o governo Michel Temer terminará com uma mulher em 29 ministérios, o de Jair Bolsonaro começará com duas em 22 — teima em não enxergar, boa parte do mercado já compreendeu.

Consumidores, aqui e lá fora, estão dispostos a privilegiar empresas que reproduzam em equipes de trabalho, propaganda e processo produtivo a diversidade existente na sociedade. Não por acaso, multiplicam-se iniciativas para impulsionar negócios segmentados. O Movimento Black Money estimula troca de conhecimento e transferência de renda entre negros; o Pink Money, na comunidade LGBT. Ações de desenvolvimento local tentam alavancar geração de trabalho, renda e consumo num só território.
Com escala, são iniciativas com potencial para redesenhar o mercado. Nos EUA, a Nielsen estima que a clientela multicultural — 40% da população, formados por afro-americanos, asiáticos e hispânicos — tem poder de compra de US$ 3,2 trilhões. Desde 2013, contribuíram com US$ 14 bilhões em crescimento de vendas de bens embalados. Aqui, o Instituto Locomotiva estimou em R$ 1,7 trilhão a renda das mulheres (41% da massa salarial). O Brasil negro, com R$ 1,8 trilhão, seria a 17ª economia planetária. É dinheiro demais para ser desprezado.

Feliz Natal! Com livros. Delas.

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