sábado, 10 de novembro de 2018

Crônicas do Dia - Excludente de ilicitude, um (triste) romance

Rio - "Meu marido estava sentado na porta de casa, com o nosso filho no colo. Conversava com dois irmãos dele, enquanto embalava o menino, que tinha a cabeça encostada em seu peito e as pernas estiradas no seu colo. Os policiais passaram na frente da casa, de carro, e acharam que o meu marido tinha no colo um fuzil. Acreditam? Confundiram a criança de menos de um ano com fuzil. Então atiraram nele. Meu marido caiu morto prum lado e o bebê caiu chorando pro outro. E agora, o que vou dizer para o meu filho quando ele crescer? Como explicar que o pai dele foi atingido por um tiro quando o segurava no colo?"


A pergunta da viúva é feita ao tempo e no tempo se perde. Por isso, não há quem possa responder. Não há respostas (...)
Os jovens Pedro, de 21 anos, José, de 19, e o menor Antonio (Tunico), de 17, moradores do Morro do Desassossego, foram entregues a bandidos do Morro da Paulista, facção rival à da favela em que viviam, pelo tenente das forças de intervenção José de Arimatheia Vasconcelos. Os três foram executados na localidade conhecida como Alto da Pedra, com requintes de extrema crueldade.

Comandantes das forças policiais querem que o caso seja julgado pela Justiça Militar. (...) "Pode isso, Arnaldo?", pergunta o locutor esportivo durante a transmissão do clássico que decide o título (...)
Quando a vizinha disse "Corre lá, comadre, que o teu filho foi baleado" a mãe não acreditou. Afinal, o menino estava ou deveria estar na escola. Mas foi baleado. Foi na escola. Bala perdida encontrou o moleque que se divertia no recreio do colégio público. A mãe enterrou a cabeça no tanque onde lava as roupas - dela e dos filhos - com sabão em pó. E assim ficou, segundos eternos, até os olhos arderem, o nariz começar a coçar e a cabeça explodir num pudim de sangue (...)
A menina também estava na escola. Brincava de pique-esconde e chicote queimado no pátio, enquanto do outro lado do portão, na rua, gritos, sirenes e pipocar de tiros diziam que havia uma sofreguidão, polícia perseguia bandidos, bandidos perseguiam polícia, a pior das pílulas voadoras acertou a menina no momento exato em que mostrava para as colegas como é que se usa batom.
A mãe guardou a camiseta da escola e uma foto que a menina guardava na agenda, feita no dia em que completou treze anos. O pai guardou a mochila e o casaco. Agora dizem que fica andando para lá e para cá, abraçado ao casaco, cheirando o casaco, e repetindo baixinho umas falas que ninguém entende. O irmão herdou os livros e a irmãzinha com o batom carmim. Ninguém ficou de mãos abanando (...)
EXCLUDENTE DE ILICITUDE é como o candidato chama o salvo-conduto que pretende dar aos policiais que matam sem necessidade. "Quero dar carta branca para a polícia matar, sim", bradou ele, em discurso recente (...)"
Depois de amanhã é dia de votar.

Luís Pimentel é jornalista e escritor

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