sábado, 15 de setembro de 2018

Crônicas do Dia - Memórias da ditadura II



Artur Xexéo

“Roda viva”, o primeiro musical teatral de Chico Buarque, tornou-se inesquecível muito mais pelo símbolo contra a ditadura militar no qual se transformou do que por suas qualidades dramatúrgicas. A peça teve sua carreira interrompida quando uma de suas sessões foi invadida por um grupo conhecido como Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O cenário foi destruído, o elenco foi acuado, Marília Pêra foi agredida e “Roda viva” entrou para a História. Foi exatamente há 50 anos. Pouca gente viu “Roda viva” depois disso, e o musical de Chico tornou-se um mistério.


O episódio, que ganhou um capítulo só para ele no best-seller “1968 — O ano que não terminou”, de Zuenir Ventura, é um dos acontecimentos mais emblemáticos daquela série de acontecimentos que marcaram o ano em questão. “Roda viva” estreou no Rio de Janeiro no dia 15 de janeiro de 1968 no Teatro Princesa Isabel. Inaugurado três anos antes, o Princesa Isabel teve seus 300 lugares sempre ocupados desde o período de ensaios da peça. Era grande a expectativa para se conhecer o primeiro texto teatral de Chico, que, desde os festivais da Record e a explosão de “A banda”, tornara-se o artista mais popular do país. Tá bom, o mais popular era Roberto Carlos. Mas Chico estava ali, disputando o posto.

Era uma peça de oposição, mas não uma oposição ao regime militar. “Roda viva” combatia a nascente indústria cultural. Vítima ele mesmo da engrenagem que movia a criação de ídolos, Chico escreveu um desabafo que criticava a roda viva em que estava aprisionado. Os protagonistas eram Marieta Severo e Heleno Prestes. E tudo poderia se tornar um musical ingênuo se Chico não tivesse convidado Zé Celso Martinez Corrêa para dirigir o espetáculo.

Zé Celso fez o que na época era chamado de “teatro de agressão”. Na cena mais famosa, o elenco estraçalhava um pedaço de fígado bovino, fazendo o sangue respingar sobre o público. Ele deixava os atores improvisarem, e Paulo César Pereio aproveitou para rechear a peça com palavrões. O público ficou perplexo. Esse é o mesmo Chico que compôs “Carolina”? Não era. Esse era o Chico revisto por Zé Celso.

A peça despertou polêmica, mas nada que ameaçasse o regime dos generais. Foi, então, para São Paulo, onde estreou no Teatro Ruth Escobar, no dia 17 de maio, com Marília Pêra no lugar de Marieta e Rodrigo Santiago no de Heleno. O Ruth Escobar tinha duas salas, o Teatro Galpão, onde ficou em cartaz o musical, e a Sala Gil Vicente, onde, um mês depois, estreou “Feira Paulista de Opinião”.

A outra peça era uma criação coletiva, produzida pelo Teatro de Arena, que reunia seis textos curtos (escritos por Lauro César Muniz, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Plínio Marcos e Augusto Boal) intercalados por canções (compostas por Edu Lobo, Caetano Veloso, Ary Toledo, Sérgio Ricardo e Gilberto Gil). Todas as obras respondiam a uma pergunta: O que você pensa do Brasil de hoje? A “Feira” irritou o regime desde o começo da temporada. A peça estreou sem a liberação da Censura. Quando a liberação chegou, impunha 84 cortes. A produção resolveu continuar em cartaz sem os cortes. A Gil Vicente virou um ponto de resistência da classe artística contra a ação repressora do governo.

Na noite de 17 de julho, 20 elementos do CCC invadiram o Teatro Galpão. Ninguém entendeu muito bem por que a peça de Chico tinha sido escolhida. Tudo só foi esclarecido no fim do ano, quando o próprio Chico foi chamado para depor no Dops. O inquisidor perguntou-lhe se ele era comunista. Chico negou. Perguntou, então, o que ele tinha contra o governo. Chico explicou que a peça não era contra o governo, mas contra a indústria cultural. “Então, por que tem uma cena na qual um militar defeca em seu capacete?” Chico não soube o que dizer. Não tinha escrito esta cena. Só pensava em “como o Zé Celso mexeu na peça durante a temporada paulista”.

O tempo provou que, neste episódio, Zé Celso é inocente. Na verdade, a tal cena faz parte de “Verde que te quero verde”, o texto que Plínio Marcos escreveu para a “Feira Paulista de Opinião”, como esclarece Jô Soares em seu “Livro do Jô”. Quando o grupo paramilitar chegou ao Teatro Ruth Escobar, a “Feira” já tinha encerrado sua sessão. Para não perder a viagem, a turma invadiu “Roda viva”, que ainda estava no segundo ato.

“Roda viva” teve uma sobrevida. A montagem foi refeita e chegou a estrear no Teatro Leopoldina, em Porto Alegre. Mas, lá, o elenco foi agredido de novo (desta vez com indícios de que soldados do III Exército participaram da agressão), a atriz Elizabeth Gasper, que substituía Marília, foi sequestrada, e a trupe “convidada” a sair da cidade. Chico nunca mais autorizou que sua peça fosse montada. Abriu uma exceção para uma produção amadora de estudantes de teatro do Rio. Desde o começo do ano, diz-se que Zé Celso, enfim, convenceu o autor a remontar o espetáculo. Mas não há prazo para que isso aconteça. Zé Celso vive o problema de todo produtor teatral brasileiro: não tem dinheiro.

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