sábado, 27 de janeiro de 2018

Crônicas do Dia - A síndrome da multipresença

Rio - Não são poucas as piadas que têm como pano de fundo a nossa dependência da conectividade digital através de celulares e o quanto ela está afetando as relações pessoais. Talvez a mais conhecida seja a da avó, recebendo a visita da família e ficando em meio a todos, silenciosos, cada um com suas mídias sociais.


Outra consequência da hiperconectividade, talvez ainda pouco notada, é a síndrome da multipresença. Diante da facilidade de nos comunicar e da crescente possibilidade de fazer isso através de vídeo, estamos desenvolvendo a sensação de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Isso não só dificulta nossas relações pessoais, mas também distorce nossa relação com o espaço em que nos encontramos. Parece que estamos perdendo a noção do lugar em que estamos e ultrapassando as barreiras do bom senso. Outro dia, numa estação do metrô, vi uma mulher de cócoras filmando várias folhas espalhadas no chão e dando broncas, acredito eu, em sua secretária. Mães dando bronca em filhos através de videochamadas em salas de espera e executivos discutindo projetos em reuniões virtuais em pleno aeroporto já se tornaram figuras comuns.

Muito além da fantasia de que podemos estar em vários lugares ao mesmo tempo e de agirmos como se realmente estivéssemos, está o risco da perda de contato com a realidade que nos cerca. Já podemos vivenciar cenas hilárias (se não fossem trágicas) em que pessoas num mesmo espaço encontram-se cada uma em um lugar diferente. Os acessórios básicos são um celular e um fone de ouvido. Funcionam como uma máquina de teletransporte que tira de nós, inclusive, o bom senso e a boa educação. Chegamos ao ponto de considerar impertinente ou louca a pessoa que insiste em puxar assunto e obriga-nos a perceber e permanecer no lugar onde nos encontramos.

Um dos únicos lugares onde as crianças e os jovens são convidados a se afastar da 'máquina de teletransporte' é a escola, um lugar potencialmente rico em possibilidades de fazer com que eles vivam experiências dinâmicas, intensas e transformadoras que desenvolvam a vontade de se relacionar com o espaço que os cerca. A escola precisa, urgentemente, se tornar um antídoto para a síndrome da multipresença, sob pena de estarmos criando uma geração "multiausente" e fora da realidade.

Jornal O Dia - Júlio Furtado

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