Em última instância, a verdade é que não existe interesse em que o consumo seja reduzido, pelo contrário
28/10/2017
O DIA
Rio - Na América do Sul morrem 418 pessoas a cada dia devido ao consumo de álcool. Ou seja, mais de 150 mil pessoas por ano. Este número é do 'Informe de situação regional sobre o álcool e a saúde nas Américas', de 2015, da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), que traz uma análise dos padrões de consumo e também indica recomendações sobre as políticas públicas de mais impacto.
À primeira vista, a receita é simples, e várias sugestões nem sequer requerem grande investimento: restringir publicidade, implementar impostos especiais ao consumo de álcool, estabelecer políticas de idades mínimas de consumo, etc. Para reduzir os impactos negativos do consumo de álcool, a solução está aí, já conhecemos e sabemos que implementar essas políticas salvariam milhares de vidas.
Diferente de um problema de saúde que requer o desenvolvimento de vacina ou medicamento novo, em se tratando de reduzir o dano causado pelo consumo de álcool, temos certeza sobre o que resultaria mais efetivo. A barreira neste caso parece ser outra. Criar políticas que interfiram em grandes interesses econômicos os dos empresários das indústrias de bebidas alcoólicas e de publicidade é tarefa titânica, cheia de obstáculos avassaladores, cujo resultado é que políticas efetivas não são implementadas e as mortes relacionadas ao consumo de álcool continuam crescendo.
Falando claramente, existe um discurso público por parte da indústria que busca nos levar à conclusão de que eles estão muito preocupados com o bem-estar de seus clientes: "beba com moderação", ou "se beber, não dirija", etc. Mas a verdade é que não existe evidência de que essas mensagens prescritivas, impressas em letras muitos pequenas em suas garrafas ou em seus espaços publicitários, sejam minimamente efetivas.
Quantas corridas de 5k possuem o patrocínio da indústria do álcool (além da indústria de alimentos ultraprocessados e outras que aplicam essa mesma tática)? Quantas equipes profissionais de futebol promovem o consumo de uma ou outra marca de cerveja? A mensagem que pretendem dar é que apoiam o esporte, e além disso que existe compatibilidade entre praticar esportes e consumir álcool.
Em última instância, a verdade é que não existe interesse em que o consumo seja reduzido, pelo contrário. O real interesse é que o consumo cresça, aumentando os lucros, desde que a indústria saia ilesa na designação de responsabilidades pelos falecidos e afetados por essa problemática.
Aqui se coloca um debate muito relevante que coloca duas posições em oposição: de um lado, a liberdade individual de consumir o que se quer; do outro, as medidas de Saúde Pública que poderiam restringi-la. Uma política mais 'paternalista' seria aquela que proibiria a venda de álcool, mas já conhecemos os resultados desastrosos da proibição: o surgimento de poderosas máfias que da mesma forma destroem vidas.
As repercussões pelo consumo de álcool na região sul-americana são devastadoras e cada vez maiores, sobretudo em jovens e mulheres. O consumo de álcool incrementa o risco de doenças como a cirrose hepática, mas, além disso, aumenta o risco de câncer, diabetes, doenças cardiovasculares, e, sobretudo, traumatismos causados por agressões ou acidentes de trânsito. As soluções estão à mão e requerem compromisso e ação por parte de autoridades e da sociedade.
Os resultados obtidos pela experiência de controle do tabaco, que tem como um dos seus principais marcos um tratado internacional no âmbito da OMS com recomendações e medidas a serem tomadas, nos encoraja a alcançar a implementação de políticas efetivas em âmbito regional ou mundial em base à ampla evidência que temos sobre sua efetividade. Ainda que seja previsível que a interferência da indústria não nos dará trégua, conseguir que o interesse público se sobreponha aos interesses privados é viável e só depende de nós mesmos.
Carina Vance é ex-ministra da Saúde do Equador e diretora do Instituto de Saúde Pública da Unasul
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