domingo, 8 de outubro de 2017

Crônicas do Dia - O que me mete medo - Ruth de Aquino

Em nome da religião, da moral e dos bons costumes, foram cometidos na História crimes tenebrosos. Mesmo assim, a humanidade não aprende. Continua até a eleger fundamentalistas religiosos. A submissão a fanáticos de fala mansa, a mistura explosiva de política com fé num Estado laico, o discurso da verdade absoluta e a intolerância com outras crenças, tudo leva a algo perigoso: a censura. De pensamento, de expressão e de comportamento.


O Brasil vive um retrocesso travestido de “bom-mocismo”, um roteiro que induz ao autoritarismo. Nem falo de política. Mas de cultura. Duas exposições provocaram histeria coletiva: a Queermuseu, em Porto Alegre, e a performance La bête, no MAM de São Paulo, com um artista e coreógrafo nu, inspirada nas esculturas Bichos, de Lygia Clark (1920-1988). Funcionários do MAM foram agredidos! Uma mostra foi fechada! A outra não virá para o MAR no Rio de Janeiro, só “para o fundo do mar”, segundo o prefeito Crivella! Tempos sombrios, de nudez castigada e linchamentos estimulados. 

>> Como movimentos ultraconservadores conseguiram encerrar a exposição Queermuseu

Vamos aos fatos porque a gritaria embaça o raciocínio. A Queermuseu exibia 264 obras de 85 artistas brasileiros, nomes consagrados como a carioca Adriana Varejão, nascida em 1964, e até já mortos, como Alfredo Volpi (1896-1988). Apenas três obras foram acusadas de “apologia à pedofilia e à zoofilia [sexo com animais]”. O promotor da infância de Porto Alegre descartou as acusações. Mas o Santander Cultural cedeu à inquisição dos militantes do MBL (Movimento Brasil Livre – quanta ironia!) e interrompeu a mostra.

Na outra exposição, em São Paulo, o MAM alertava para um homem nu numa sala, que estava ali para ser visto ou tocado, como tocamos nas esculturas com dobradiças de Lygia Clark. Não havia classificação de faixa etária, um equívoco facilmente sanado, embora pais e mães mantenham poder de decisão. Pais e mães podem achar que a nudez ao vivo desperta reflexão e não maus pensamentos em seus filhos. Uma menina, ao lado da mãe, mexeu na mão e no pé do artista nu. E isso bastou para que todos ali se tornassem demônios em forma de gente. Gente ruim, pedófila, imoral.

Cada família lida com a nudez de forma particular. Há crianças que tomam banho de chuveiro com pais – obviamente pelados. Há crianças que “interagem” com a nudez de estranhos porque frequentam praias de nudistas. Fui a praias de nudismo em Portugal, na Grécia, na Croácia, em lagos na Alemanha. Famílias caminham, brincam, nadam, com mais naturalidade com o corpo alheio do que vemos nas praias brasileiras, bem mais erotizadas com seus biquínis de fio dental. O topless é atacado aqui. Considerado convite ao estupro. Inacreditável.

Agora, as críticas. Eu levaria uma filha ou uma neta para tocar um homem nu estranho numa sala de museu? Não. Entendo quem se choque. Não entendo quem queira fechar a exposição com base nesse estranhamento. Simples. Não vá. Grite nas redes sociais. Ok. Existe ou não o livre-arbítrio? Em 1977 – ou seja, 40 anos atrás –, uma das papisas da body art, a sérvia Marina Abramovic, ficou nua com seu namorado Ulay na porta de um museu de Bolonha, Itália. Quem entrasse precisava se espremer de lado entre os corpos nus, inevitavelmente tocando a pele de um ou de outro ou de ambos. O mundo não caiu. Obscena não era a performance, mas a corrupção dos políticos italianos, combatida depois pela Operação Mãos Limpas.

Outra crítica. “Homem nu no museu não é arte, é pouca vergonha, é pornografia, é atentado ao pudor.” Entendo quem pense assim, porque foi educado dessa maneira. A definição de Arte é subjetiva. E é bom que continue a ser. Em exposições no Brasil e no exterior, eu deparo com obras que me despertam encantamento ou repulsa. Na atual Biennale de Veneza, pensei várias vezes: isso não é Arte. Nossa reação a uma obra é válida, não precisamos ser especialistas, não condeno quem desconsidera mostras polêmicas como Arte. Mas daí a censurar existe um abismo.

Artistas não me metem medo. O que me aterroriza é a intolerância ampliada – que agride funcionários do MAM ou religiosos afro-brasileiros em nome de Jesus, quebrando terreiros. O que me mete medo é ter um prefeito que se comporta como pastor. Crivella se insurgiu contra o Carnaval prometendo dar o dinheiro do samba às creches. As creches estão à míngua. O que me mete medo é a Câmara dos Vereadores se transformar em templo de culto. O que me mete medo é Crivella mudar nomes das ruas numa das comunidades mais violentas da favela da Maré, para Rua Adoração, Travessa Monte Sião... Ou prometer “um banho de loja” na Rocinha. O que me mete medo é, no meio do caos carioca, Crivella entoar cânticos de louvor em programa religioso de TV à noite. O que é isso? Para muita gente, é falta de pudor.

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