terça-feira, 5 de setembro de 2017

Crônicas do Dia - Estado de exceção -

Toma corpo a ideia de que para enfrentar corrupção são necessárias soluções jurídicas inéditas

03/09/2017 
João Bernardo Kappen, O Globo

É preciso que se diga que as coisas estão sendo feitas à revelia da lei, e que o discurso do combate à corrupção está justificando a ruptura das regras do estado de direito.

Há de fato em curso uma mudança de paradigma do sistema penal brasileiro, muito parecido com o que se passou na Itália nos anos 1970 e 1980. Tal como lá, toma corpo entre nós a ideia de que o estado de direito precisa sofrer pequenas rupturas para evitar rupturas maiores, no sentido de que para enfrentar o mal da corrupção é necessário pôr em prática soluções jurídicas inéditas e extraordinárias.

Os crimes investigados na maior operação policial da história brasileira estão sendo tratados não como crimes comuns, mas como crimes contra a soberania e o interesse do Estado. E aí entra em jogo a razão de Estado, que consente com a ruptura da legalidade e com a alteração das regras ordinárias toda vez que elas entram em conflito com os interesses do Estado.

Foi por causa de uma cultura de emergência e de uma prática de exceção, legitimados pelo discurso de combate ao terrorismo, que a Itália dos anos 1980 transformou o Direito e o processo penal, justificando politicamente a ruptura das regras em nome da razão de Estado. Com isso, as soluções para os processos criminais passaram a admitir exceções às regras legais.

O jurista italiano Ferrajoli lembra que, na Itália, ficou assentado por anos que as leis excepcionais eram, no seu conjunto, necessárias politicamente eque as garantias processuais dos acusados serviriam apenas para os tempos e processos normais, não para aqueles extraordinários em que se combatia o terrorismo. Em 1982, a Corte Constitucional italiana decidiu que “diante de uma situação de emergência, legitimam-se medidas insólitas”.

No Brasil de 2017, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu que “os processos e investigações criminais da operação Lava-Jato constituem caso inédito, a merecer um tratamento excepcional”. A exceção, portanto, no lugar das regras normais.

Dois são os fatores que constituem um Direito Penal de exceção, uma legislação de exceção em relação à Constituição e uma jurisdição de exceção. Ferrajoli afirma que o que justifica procedimentos excepcionais é justamente a razão de Estado, esta que deu vida a tribunais especiais durante o fascismo italiano.

Está em curso nos tribunais brasileiros a construção de uma jurisprudência de ruptura das regras do estado de direito, sob o pretexto da emergência do combate à corrupção. Mas, se não percebermos logo que a função dos juízes não diz respeito à razão de Estado, ou seja, a interesses públicos de caráter geral, mas sim aos casos particulares nos quais incidem os direitos fundamentais dos cidadãos acusados, mesmo que estejam em conflito com os interesses do Estado, o primeiro e provavelmente único morto neste combate tupiniquim será o próprio Estado de direito.

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