quarta-feira, 19 de julho de 2017

E se Lima Barreto – o homenageado da FLIP este ano –, em vez de mulato, fosse preto?




Lima Barreto (1881 – 1922)

Esta pergunta, assim mesmo, gingada e rimada como num verso de samba, eu fiz, poucos anos atrás, numa reunião pública em que se discutia a presença do negro na Literatura Brasileira.


O que eu buscava, com a aparente ironia da pergunta, era mostrar algumas das muitas insídias e falácias do racismo brasileiro, do qual o nosso Lima, embora vítima, não o foi mais, por exemplo, do que foi Hemetério dos Santos, um preto retinto, brigão como ele só.

Gramático, filólogo e escritor, esse Hemetério que hoje ninguém mais conhece, nasceu no Maranhão trinta anos antes de Lima Barreto, em plena vigência da ordem escravista, para falecer no Rio dezessete anos depois do nosso focalizado. Professor do Colégio Pedro II, na opinião de Sílvio Romero ombreava com Olavo Bilac, Graça Aranha, Aluísio e Artur Azevedo, no uso da palavra escrita. Só que, após a morte de Machado de Assis (neto de ex-escravos), acusou-o de ter traído o povo negro. E essa posição determinou um bem organizado boicote à sua obra e à sua memória. Emílio de Menezes, chamando-o “Hemetério de Souza”, dedicou-lhe dois sonetos satíricos, muito engraçados, mas demolidora e escancaradamente racistas. E Luiz Edmundo traça, dele, um perfil de “filólogo profundo” mas “um tanto discutidor”.


Hemetério José dos Santos (1858 – 1939)

Pretos retintos de grande talento, invisibilizados pelo racismo brasileiro houve e há muitos, todo mundo sabe! Mas, agora, diante do “politicamente correto” que, mesmo às vezes com hipocrisia, tanto se pratica, a invisibilização usa outras armas, ainda mais perigosas e letais. E estes novos tempos, me levam, então, a reformular, com a mesma ginga, a pergunta inicial. E se esse “subversivo” ao invés de finado fosse vivo?

Ah, leitor! Se vivo fosse, o nosso Lima certamente estaria desancando o pau nos políticos bandidos, cariocas e de todo o Brasil, como fez no Gonzaga de Sá:

“As paixões, mesquinhas paixões políticas, exaltam os ânimos de tal modo, que uma facção não teme eliminar o adversário por meio do assassinato, ás vozes o revestindo da forma mais cruel” – escreveu ele.

Pela boca de Policarpo Quaresma, estaria, com toda a certeza, exprobando a mania do inglês que nos afoga a todos neste grande mar de deliverys, resorts, petshops e fashion-malls – porque o velho Quaresma sabia que guando é muito mais gostoso que petit-pois.

Se ainda estivesse entre nós, Lima Barreto já teria, é claro, botado o bloco na rua contra a conversão do Rio de Janeiro no grande feudo do neopentecostalismo:

“Lá na sua terra, como aqui, esses pequenos luteros fazem prosélitos. (…) Mr. Shaysobtinha, na vizinhança do carteiro Joaquim dos Anjos, não prosélitos, mas muitos ouvintes, dos quais uma Quinta parte afinal se convertia”.

– Fotografava ele em Clara dos Anjos, da mesma forma que, zuenir-ventureando, já na década de 1910, mostrava a cidade partida, como neste trecho do mesmo romance:

“Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel da casa. Aquela zona não lhe oferece outra vantagem. (…) Não há água (…), não há esgotos; não há médicos, não há farmácias”.

Quem quer, então, que resolva estudar a história e a sociologia da cidade do Rio de Janeiro, tem que passar pelos textos, jornalísticos ou ficcionais, de Lima Barreto. Nem João do Rio, mulato brilhante que tinha sua circunstância étnica maquiada pelos perfumados sobrenomes de família, conhecia tão bem esta parte do Rio que começa no Méier e se espraia até Santa Cruz, Campo Grande, Pavuna, Vigário Geral e Baixada.

Claro é que o Lima ia à Cidade e a Botafogo. Mas o seu ponto de observação preferido ficava depois do Méier, em Todos os Santos, na rua que hoje se chama Major Mascarenhas. Foi dali que ele fotografou e radiografou a sociedade de sua época, denunciando o racismo e as injustiças sociais e captando com ironia e amargura, mas sempre magistralmente, a vida carioca de então.

Era num boteco de esquina na atual Rua José Bonifácio (antiga Rua de Todos os Santos) com a velha Avenida Suburbana, hoje Dom Hélder Câmara e então Estrada Real, que ele estendia seu acurado olhar sobre o Brasil. Dali, de vez em quando, levantava os olhos fitando a Serra dos Órgãos que ainda se via lá longe, olhando os bois e a velha casa de fazenda. Noutros instantes, olhava o capinzal e se imaginava criança, na roça da Ilha do Governador.

E essa foi talvez a causa maior de sua exclusão. Fiel às suas origens étnicas e de classe e repudiando o colonialismo cultural, por isso é que Lima foi rejeitado pelo mundo literário de sua época. Mulato, tudo bem! Biriteiro, idem! Afinal, uns mais outros menos, quase todo mundo era! Mas… suburbano?!

Acontece que o conceito de subúrbio nunca foi rígido. Do ponto de vista geográfico, toda povoação afastada do centro urbano, o é. Como foi o Rio além Botafogo, à época do nosso focalizado. Como seriam hoje o Recreio, a Barra, a Gávea, o Cosme Velho, o Jardim Botânico e o Leblon. Subúrbios chiques, é claro! Porque a noção derrogatória de subúrbio, aqui, conota com falta de planejamento urbanístico e saneamento adequados, transporte precário e carência de equipamentos.

Mas, como já dissemos em outras oportunidades, o fato de o subúrbio não contar com a mesma infraestrutura urbana nem com as mesmas ofertas de lazer de outras partes da cidade não desmerece seus habitantes. Ela desonra é as autoridades, que, tratando essas regiões privilegiadamente, são as grandes responsáveis pela difusão do preconceito.

Lima Barreto morava em casa com quintal, lia os jornais e proseava no boteco, parece que jogava no bicho, e ia para o trabalho de trem. Então, foi um carioca suburbano na melhor acepção da palavra. E fez do subúrbio seu posto de observação privilegiado e a matéria prima de seu humanismo absolutamente universal. Por isso, o estudo da história do Rio de Janeiro – repito – passa obrigatoriamente por seus textos, jornalísticos ou ficcionais.

Tudo isso que agora aqui repito foi dito, quinze anos atrás, no prefacio do livro “Lima Barreto e a Pátria Que Não Foi”, do historiador Denilson Botelho, agora relançado pela Editora Prismas. E continua valendo. Construindo o perfil político do autor através de seus textos, o livro mostra não uma estrutura ideológica perfeita e acabada (Foi marxista? Foi anarquista?), mas um ser humano inconformado com a exclusão política, social e econômica que até hoje persiste no Rio e no Brasil.

Na República em que Lima viveu e criou, com a desorganização da produção agrícola após a Abolição e a falta de uma política fundiária, africanos e descendentes vieram para as cidades engrossar a massa de miseráveis. E o imigrante, principalmente europeu, aqui chegado a partir de 1824, depois de substituir o escravo na lavoura, passou também a ocupar, nos centros urbanos, os espaços do trabalho assalariado, antes próprio dos negros, como, por exemplo, nos ofícios de quitandeiros e vendedores ambulantes. A estes, então, restaram as ocupações de menor remuneração e menos futuro.

Neste início do século 21, parte da subalternidade de negros e brancos pobres pode ser debitada ao modelo educacional. Em geral sem acesso, desde o curso elementar, aos melhores estabelecimentos de ensino, o jovem humilde dos subúrbios e da periferia (e principalmente o afrodescendente) se vê alijado de redes de amizade e parcerias importantes para a vida adulta, o que o afasta do poder decisório, mantendo-se, assim, o círculo vicioso da exclusão.

Assim, o desencanto de Lima com “a pátria que não foi” é o de todos nós. Analisado microscopicamente no livro de Denílson Coelho, do bacharelismo à condução da política econômica, do autoritarismo à corrupção, do cosmopolitismo à colonização cultural, esse desencanto permanece absolutamente atual.

Lima, como muitos de nós, sonhou uma pátria mítica. Cujo projeto, realizado, ao contrário do que em geral se pensa, deu certo, sim! Ou não foi esse projeto pensado e elaborado para a exclusão sistemática de negros e pobres e a manutenção dos privilégios de sempre?

PS: Em O Globo de hoje (16/04/17, coluna de Lauro Jardim, p. 2), noticia-se o esculacho do Lima no “futurismo” dos modernistas paulistas, que responderam xingando-o de “escritor de bairro”.


Nei Lopes 

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