sábado, 22 de julho de 2017

Alcoolismo e Loucura em Lima Barreto

Houve quem perguntasse: bebemos porque já somos loucos ou ficamos loucos porque bebemos? Lima Barreto - Cemitério
dos Vivos




A associação entre loucura e alcoolismo constitui tema de ampla discussão moral e social na literatura do romancista carioca Lima Barreto. Ao lermos seu último e inacabado romance – Cemitério dos Vivos - podemos acompanhar sua crítica à construção de um saber psiquiátrico sobre o alcoolismo que, nas primeiras décadas do século XX, era classificado como fator de degeneração mental e de conduta imoral dos indivíduos, com implicações negativas na família e na comunidade local. Ao mesmo tempo, o autor denuncia a instrumentalização da polícia para a ordenação moral dos indivíduos e o seu papel nas internações manicomiais. No mais, Barreto revelou o atrelamento da psiquiatria ao sistema penal, como ordenação social e política do período republicano, organizado ao redor da punição, que confinaria o louco e o alcoólatra sob a tutela do médico, esse como agenciador científico de controle social.

No início do século, eram potencialmente trágicas as internações, principalmente, numa sociedade na qual tudo parecia se agrupar num conjunto de condutas anti-sociais condenadas pelas autoridades. O alto número de internações propiciou o estabelecimento de culpas morais e sociais, de parentescos novos e de obscuras cumplicidades em torno da loucura, ou seja, o hospício havia se tornado algo semelhante aos estabelecimentos de internação da época clássica, um local de exclusão, onde encerravam-se


indivíduos diferentes uns dos outros, pelo menos segundo nossos critérios de percepção: encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de alteração(1).
De fato, os hospitais psiquiátricos não estavam destinados apenas a receber os loucos, mas grande quantidade de pessoas muito diferentes umas das outras. Com a ampliação de parentescos em torno da loucura, houve crescimento vertiginoso das internações nos hospícios, principalmente depois da Proclamação da República e da promulgação do Decreto de n.206 A, de 15/2/1890, que determinava que todo cidadão que perturbasse a ordem pública, a moral e os costumes seria internado em asilos públicos. Inicialmente, todos os indivíduos que perturbavam a tranqüilidade pública eram internados no Asilo de Mendicidade e na Casa da Correção, que abrigava também os chamados loucos criminosos. Com a Proclamação da República, e com o início da construção do Hospício Pedro II, todos esses indivíduos foram recolhidos para o novo hospício.

Por essa época, o alcoolismo aparecia como uma das causas mais comuns de internamento em hospícios. A internação de alcoólatras em hospício colocava o álcool não apenas no círculo das drogas legais, mas também no círculo dos “venenos sociais”.


O álcool, droga legal, quando combinado com as chamadas violências ‘anti-sociais’ ou quando leva à loucura, é geralmente condenado como qualquer droga ilegal pela sociedade. O risco é a morte, porque o defensivismo individual torna os corpos impotentes(2).
No relatório intitulado Notícias Sobre a Evolução de Assistência a Alienados no Brasil, o psiquiatra Juliano Moreira resgata historicamente algumas noções sobre o alcoolismo, associando-o ao enfraquecimento da raça, e atribuindo, por exemplo, o fator de degeneração mental dos negros à alta absorção de álcool durante as viagens nos navios negreiros vindos da África. Segundo Juliano Moreira, o alcoolismo forçado foi um dos recursos mais eficazes dos colonizadores para manter a ordem e a disciplina dos negros desobedientes e revoltados. O álcool, ingerido em grandes quantidades, servia para abrandar o sofrimento dos negros nas penosas viagens pelos mares, assim como anulava a “agressividade inata” dos negros africanos. Para Moreira, o alcoolismo contribuiu acentuadamente para a degradação psicológica da raça negra, vista por ele mesmo como raça “embrutecida” nos primeiros anos de colonização.

É importante ressaltar que o próprio psiquiatra se encarregou de dar vida às suas teorias, propondo a construção do pavilhão destinado aos alcoólatras internados no Hospício Nacional, pois achava que,


sendo grande o número de alcoolistas que sobrecarregam o erário público com uma despesa inútil, visto como muitas vezes somos obrigados a mantê-los aqui porque sabemos que, mesmo cessado o delírio, o dia da alta é freqüentemente a véspera da volta em carro de polícia, faz-se preciso crer nas colônias de Estado uma seção para tais doentes, muitas vezes excelentes trabalhadores quando isentos do álcool(3).
A preocupação de Juliano Moreira com os alcoólatras refletia mais um desejo de intervir eugenicamente na sociedade do que resolver o problema do alcoolismo. Daí a interpretação preventiva do psiquiatra, que colocava o alcoolismo como fator de desestruturação social e uma das causas principais da degeneração social e moral da sociedade.

Quando os psiquiatras envolveram-se com o problema do alcoolismo, trataram do problema como uma doença coletiva, um “veneno social”, e não apenas um simples problema individual. Segundo Jurandir Freire Costa,


os psiquiatras, em sua maioria, faziam voto de abstinência de álcool, para dar o bom exemplo aos alcoólicos e à sociedade em geral. Por outro lado, referiam-se às suas campanhas eugênicas chamando-as de cruzadas; diziam-se apóstolos da higiene mental e, por vezes, comparavam suas mensagens eugênicas às mensagens evangélicas(4).
Alguns até o consideravam uma doença hereditária, o que é bem assinalado por Lima Barreto nas primeiras páginas de Cemitério dos Vivos, cujo mérito está em afugentar para longe as concepções geneticistas sobre o alcoolismo, das quais havia sido vítima. Barreto interroga que no...


caso do alcoólico: no ato da geração, dado que fosse a verdade essa sinistra teoria da herança de defeitos e vícios, o pai já seria deveras um alcoólico que tivesse as suas células fecundantes suficientemente modificadas, igualmente, para transmitir a sua desgraça ao filho virtual(5).
Em boletim médico de 29 de dezembro de 1919, correspondente à internação de Barreto no Hospício Nacional, há uma pequena insinuação a respeito da hereditariedade do alcoolismo feita pelo médico responsável.


Estou, porém, informado de que no Pavilhão de Observações, onde permaneceu cerca de um mês, teve o diagnóstico de alcoolismo. O inspetor desta seção conheceu seu pai, que era administrador das Colônias de Alienados da Ilha do Governador. Informa que este senhor fazia uso excessivo de bebidas alcoólicas, apresentando humor irascível e taciturno. Consta-nos ainda que o progenitor do observado se acha agora em avançado estado de demência(6).
Nada, até então, comprovava clinicamente a hereditariedade do alcoolismo, mas não faltavam medidas de prevenção social como campanhas antialcoólicas, que propunham extirpar o alcoolismo da sociedade. Uma outra dimensão do problema diz respeito à fantasiosa crença psiquiátrica sobre o aumento progressivo de “alcoólatras degenerados”, cujas estatísticas do período anunciavam a escalada crescente do alcoolismo. Sobre essas flutuações, Jurandir Freire Costa assinala os seguintes dados: constata-se que a taxa de alcoolismo entre os negros, que era de 6,7% no tempo da escravatura, sobe a 23,9% em 1904, para descer, em 1934, a 11,95%(4). Os psiquiatras tentavam provar, por meio de evidência estatística momentânea, que o alcoolismo era uma calamidade social, tão pernicioso quanto à prostituição e à “ociosidade” dos negros e pobres. Muitos psiquiatras, convencidos da infalibilidade de sua ciência, desprezavam os fatores psicológicos e sociais dos indivíduos na questão do alcoolismo, para abordá-lo como problema biológico, hereditário, moral, sexual e até mesmo racial, além de enfatizarem a “tendência” geral dos negros para o alcoolismo. Segundo Jurandir Freire Costa, a fácil difusão de casos de alcoolismo entre os negros não pode ser explicada por uma razão racial ou biológica, mas pela exclusão econômica do negro no mercado de trabalho depois da abolição, o que o degradou em termos psicológicos e sociais.

O alcoolismo era estigmatizado como doença capaz de levar as pessoas à loucura. Como o próprio Juliano Moreira viria a confirmar, o alcoolismo contribuía com percentual significativo nas internações do hospício. Tornou-se uma espécie de assimilação obscura da loucura, visto que o alcoólatra era inserido dentro do quadro patológico que, entre outras classificações morais, era tido como degenerado, idiota, imbecil e demente. O alcoolismo “encaminhava” os homens normais à loucura e, por esse motivo, era preciso tomar medidas morais que coibissem o seu consumo para, somente em último caso, internar o indivíduo potencialmente destinado a tornar-se “louco”, ou mesmo “criminoso”. Isso se reflete nas tentativas políticas do período de se criarem leis ou medidas cautelares para a contenção do consumo de álcool.

Com o avanço da Medicina Social, tanto a loucura como o alcoolismo começam a ser problematizados como fontes de “degradação social e moral”. Na visão dos psiquiatras do início do século XX, o alcoolismo exercia papel negativo na formação da família brasileira, degradando-a moral e socialmente, contribuindo para a degeneração mental da população e incitando-a ao crime. Onde houvesse alcoólatras, não haveria dignidade, educação, moralidade e, principalmente, indivíduos sadios; ser alcoólatra era o mesmo que ser vagabundo, malandro e desocupado.

Em seu romance de estréia, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, é feita uma das primeiras menções ao alcoolismo enquanto fonte de esquecimento dos problemas pessoais. As motivações que levaram o protagonista Isaías a pensar em embriagar-se (já que o ato não se consumou), relacionava-se sobretudo à revolta e ao protesto que manifestava contra a posição subalterna dos negros e mulatos na sociedade brasileira nos primeiros anos da República; uma República que se desejava nova, mas que herdava cinqüenta anos de Império sempre instável. Instabilidade que atingiu seu ápice com a abolição e que, de certo modo, arruinou a estrutura agrária que dependia basicamente dos escravos na lavoura.

Se no início a absorção de álcool era uma dúvida, com o passar dos anos, tornou-se para Lima Barreto uma certeza. Já não era mais possível aceitar a lucidez numa vida pautada por infortúnios. Para o escritor, embriagar-se era um ato heróico num mar de desgraças.


Foi isso há alguns anos passados. Bebia eu muito nesse tempo, muito mesmo, porque tinha por divisa: ou tudo ou nada. Além disso, adotara uma frase não sei de que autor, como complemento da divisa. - Qual é? perguntou o outro. - O burguês bebe champanha; o herói bebe aguardente(7).
Ao descrever seus vexames públicos, o escritor revelava embriagar-se com bebidas baratas e dizia-se envergonhado por ser viciado em Paraty, um tipo de bebida muito popular no Rio de Janeiro, no início do século XX, e que, pelo baixo preço, se tornou uma das suas preferidas, substituindo a cerveja.


No dia 30 de agosto de 1917, eu ia para a cidade, quando me senti mal. Tenho levado todo o mês a beber, sobretudo Paraty. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo(8).
O alcoolismo tinha estreita ligação com a qualidade de vida das pessoas no meio urbano, o que talvez explique a alta taxa de alcoolismo entre os negros nas primeiras décadas do século XX, reconhecidos como cidadãos de segunda classe.

Apesar da imagem negativa do álcool, o problema do alcoolismo não recebia maiores atenções do Estado, além de tímidas campanhas contra o seu consumo que tinham o objetivo de diminuir o número de internações nos hospícios. O álcool, por pertencer à classe dos alimentos, não tinha caráter medicamentoso. Quanto muito cabia ao Serviço Sanitário zelar pela sua qualidade e evitar as falsificações tão corriqueiras na época(9).

Ademais, tais campanhas não consideravam o alcoolismo como elemento presente entre as classes mais abastadas da população, o que pode ser entendido como uma pura defesa dos padrões morais do grupo social a que pertencia a maioria dos psiquiatras(4).

Não era a essa classe abastada que pertencia o mulato Vicente Mascarenhas, o ébrio narrador de Cemitério dos Vivos, que, pressentindo a angustiante miséria que o levaria à loucura, justificaria os motivos que o levariam a apelar para bebidas mais pesadas.


Muitas causas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-me com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci o chopp, o whisky, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele(5).
Eram essas, exatamente, as bebidas preferidas de Leonardo Flores, o poeta mulato de Clara dos Anjos. Leonardo foi certamente o personagem barretiano que melhor projetou o autor no drama devastador do “vício alcoólico”. Coincidentemente, ambos bebiam Paraty, e não levavam em conta os conselhos dos familiares e amigos que desejavam o fim do vício.

Um desses amigos chamava-se Ranulfo Prata, médico de Mirassol, interior de São Paulo, que, em princípios de 1921, convidou o escritor para passar uma temporada na pequena cidade, na esperança de regenerá-lo do vício do álcool. Nos primeiros dias em Mirassol, tudo saiu como o esperado, e o escritor chegou até mesmo a tomar leite no café da manhã, por determinação rigorosa de Ranulfo. Mas logo veio nova recaída após convite inesperado para uma conferência, feita por um grupo de estudantes entusiasmados com sua presença na cidade. O convite abalou-o, talvez por ter sido a única vez que foi convidado para proferir uma conferência. A reação foi a pior possível. Ficou nervoso só de pensar na aversão que poderia suscitar no momento do debate com o público, pois nunca havia sido contestado publicamente. Embora tenha redigido a conferência, jamais chegou a pronunciá-la, por ter desaparecido no dia em que iria proferi-la. Foi encontrado, horas depois, completamente entorpecido e desvairado, estendido numa calçada.

O efeito devastador do álcool no organismo do escritor será tema constante em Cemitério dos Vivos, revelando inclusive certo arrependimento, socialmente esperado, por ter-se entregado inteiramente ao álcool, o que o levou a pelo menos cinco internações para tratamento de crises dipsomânicas: duas no Hospício Nacional, duas no Hospital Central do Exército e uma única vez na Santa Casa de Ouro Fino, que é mencionada em uma carta ao amigo Antonio Noronha Santos, escrita em janeiro de 1916.

Com o passar dos anos, o problema com o álcool agravou-se, a ponto de deixá-lo completamente entregue ao vício. Vicente Mascarenhas, o escritor dipsomânico de Cemitério dos Vivos, expõe esse drama, ao relatar a sua conversa com o médico do hospício.


Recebeu-me prazenteiramente, falou-me, examinou-me com cuidado, viu bem os estragos que o álcool podia ter realizado em meu organismo e ficou admirado. Eram mínimos. Foi aí que eu vi bem o mal da bebida. Ela não me matava, ela não me estragava de vez, não me arruinava. De quando em quando, provocava-me alucinações, eu incomodava os outros, metiam-me em casa de saúde ou no hospício, eu renascia, voltava, e assim levava uma vida insegura, desgostando os outros, sem poder realizar plenamente o meu destino, que as coisas obscuras queriam dizer não ser o de um simples bêbado. Era preciso reagir(5).
Esse fato é confirmado pelos médicos que se ocuparam em escrever o boletim médico do escritor. Suas anotações dão uma idéia de como atuava um saber negativo do alcoolismo, em uma época em que era considerado motivo de desorganização social e moral da sociedade.


É um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar amortecido, faces de bebedor, regularmente nutrido. Perfeitamente orientado no tempo, lugar e meio, confessa desde logo fazer uso, em larga escala, de Paraty, compreende ser um vício muito prejudicial, porém, apesar dos enormes esforços, não consegue deixar a bebida. Por este abuso, já passou, certa vez, três meses no Pavilhão, o que, entretanto, nada adiantou, voltando desde a saída a embriagar-se(6).
A concepção desses boletins médicos revela a ação monótona e rotineira do diagnóstico dos doentes, certa padronização psiquiátrica na catalogação e definição da loucura, quase sempre movida por juízos de valores e rótulos, que se coadunavam com a estratégia política e normativa da psiquiatria.

A lembrança dos excessos alcoólicos e dos maus bocados vividos pelo escritor são narrados resumidamente em confissões que flagram as mais constrangedoras situações decorrentes dos seus habituais delírios alcóolicos. Essas situações ilustram o que se poderia chamar de deslocamento do álcool, enquanto droga legalizada, para formas anti-sociais e condenáveis. É quando o alcoolismo deixa de ser uma droga tolerável e torna-se escândalo público, um atentado contra a ordem pública. Em muitas dessas confissões, o escritor transporta a trágica experiência pessoal, vivida na realidade, para os personagens de sua ficção. A loucura de Leonardo Flores


era curiosa. Não só ela se manifestava com intermitências de grandes intervalos, como também as havia num curto espaço de um dia. O álcool tinha contribuído para ela; mas, sem ele, a sua alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde(10). Se em alguns casos foi a personagem que viveu o escritor, como em Leonardo Flores, em outros foi o escritor que viveu a personagem, como nas corridas completamente nu e desvairado pelos trilhos dos trens do subúrbio que, segundo Henrique Pongetti, lembrará a fuga de Tolstói em Iasnaia Poliana, durante uma crise moral.
Não foram poucas as situações constrangedoras vividas pelo escritor. Em uma delas, confidencia ao seu melhor amigo, Antonio Noronha Santos, o episódio em que teve o dinheiro roubado, depois de passar a noite inteira perambulando como indigente pelas ruas do subúrbio. Em outra circunstância, seu biógrafo conta como foi encontrado pelo amigo Antonio Noronha, depois de desaparecer por mais de um mês de sua casa e da repartição pública, agachado sobre uma sarjeta em uma rua qualquer em Todos os Santos.

Episódios como esse são similares aos relatados pelo escritor norte-americano Jack London, em seu livro autobiográfico Memórias Alcoólicas, quando também realiza retrospecto das diversas fases do alcoolismo em sua vida, narrando seus primeiros porres e vômitos, e seu relacionamento com John Barleycorn. Para o escritor, que não se considerava dipsomaníaco, mas bebedor experimentado, o alcoolismo seria uma forma de zombar da morte. O escritor associava esse nome ao álcool, pois barleycorn significa grão de cevada, que é considerada matéria-prima indispensável na fabricação da cerveja. Jonh Barleycorn também pode ser visto como uma instituição, ou mesmo um indivíduo que o espreitava, e freqüentemente o arrastava para a bebida.

Na verdade, o alcoolismo tornara-se problema crônico na vida de Lima Barreto, degradando-o psicologicamente, a ponto de não lhe deixar forças para a simples leitura de um livro. Numa crônica datada em 1919, intitulada Providências Sociais, satiriza a ação repressora da polícia carioca contra o alcoolismo. Segundo o autor, caso Rabelais, Edgar Alan Poe e Lord Byron fossem alcoólatras brasileiros seriam colocados na lista negra da polícia.

Episódios como esse ilustram o envolvimento da polícia em questões referentes ao alcoolismo que, no pensamento psiquiátrico, era visto como doença mental, nociva para a sociedade e para a nação, e explica a interdição dos bens pertencentes aos alcoólatras, por alegarem serem essas pessoas incapazes de guiar-se pela razão. Essa interdição de bens também foi assinalada por Beatriz Carneiro. Para a pesquisadora ser internado por embriaguez alcoólica ou narcótica implicava uma interdição, ou seja, suspensão legal de direitos civis, privação de reger os bens e a si próprio(9). Pode-se dizer que a polícia do período não estava apenas determinada a manter a lei e a ordem, mas também era acionada para assegurar a higiene, a saúde e os padrões de vida urbanos, além, é claro, de tutorar a prática psiquiátrica por meio de procedimentos discriminatórios e excludentes, prática legal presente no Decreto 1132 de dezembro de 1903, que estabelece no artigo nº2, item C, e no artigo nº3, fatos que se relacionam à responsabilidade do exame médico e à guarda provisória dos bens da pessoa internada. Segundo os artigos, a


admissão nos asilos de alienados far-se-á mediante requisição ou requerimento, conforme a reclame autoridade pública ou algum particular. 1. No primeiro caso, a autoridade juntará a requisição. ITEM C. O laudo do exame médico-legal, feito pelos peritos da polícia, quando seja esta a requisição. ART.4 Salvo o caso de sentença, no qual logo será dada curatela ao alienado, a autoridade policial providenciará, segundo as circunstâncias, a guarda provisória do bem deste, comunicando imediatamente o fato ao juiz competente, a fim de providenciar como for de direito(11).
A recorrência à polícia em casos relacionados a alcoolismo e loucura era defendida por psiquiatras como Juliano Moreira e João Carlos Teixeira Brandão. O primeiro, aliás, recorda no relatório já citado que, em fins do século XIX, a Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro colocou em pauta a discussão das bases judiciais dos internamentos. O referido projeto que posteriormente obteria parecer favorável, em 27 de novembro de 1896, determinava entre outras medidas de caráter policial que,


sem ordem escrita da autoridade judicial (o pretor ordinariamente, ou militar ou policial), ninguém poderá ser internado, ainda que para simples observação, sob fundamento de sofrer de alucinação mental, nos estabelecimentos dependentes da inspetoria geral de Assistência Pública ou médico-legal a alienados(12).
Em questões relativas a alienados, a legislação do período era muito clara a respeito do papel da polícia, revelando pontos curiosos como à existência de exames médicos feitos por peritos da polícia e de requisições emitidas pela autoridade policial, que informavam ao juiz competente a guarda provisória dos bens do alienado. Era legislação sobretudo preocupada em estabelecer parâmetros de conduta social, uma espécie de esforço normalizador que, por meio de medidas coercitivas, tentavam tirar de circulação o louco, o alcoólatra, o libertino, a prostituta, o mendigo, o arruaceiro, o malandro, o pingente, enfim, quase todos os indivíduos que, por motivos diversos, estivessem entregues às “devassidões públicas”.

A partir dessa constatação, é possível compreender melhor as razões que levaram o escritor a temer a polícia no ápice de suas crises delirantes, o que seria registrado nos boletins médicos do Hospício Nacional. São boletins que tentam determinar um saber sobre o indivíduo, através da observação, da classificação, da análise e registro de seu comportamento.

Tão significativas quanto à crítica à arbitrariedade policial, figuram as descrições do autor sobre o caráter agressivo e violento dos carros fortes da polícia. Tais carros, na incessante perseguição aos loucos, explicitavam os limites físicos da loucura incontrolável e enraivecida, expondo os loucos ao escândalo público, à vergonha e à humilhação. Esse momento talvez seja o ponto extremo da bestialização humana, o momento mais perverso, em que o homem, na visão policialesca, incorpora e experimenta, sem esforço, o animal.

Lima Barreto chegou a ser transportado para o hospício em veículos blindados e, em pelo menos duas oportunidades, registra a humilhação decorrente de uma crise dipsomânica:


É blindada e quem vai nela levado aos trancos e barrancos de seu respeitável peso e do calçamento das vias públicas, tem a impressão de que se lhe quer poupar a morte por um bombardeio de grossa artilharia para ser empalado aos olhos de um sultão. Um requinte de potentado asiático(13).
Sobre o tema, é possível ainda fazer referência ao imaginário da Renascença, com as naus dos loucos inspirando muitas composições literárias. Conquanto muitas dessas naus fossem criações ficcionais, ao menos uma delas constituiu uma exceção – chamava-se Narrenschiff, e era uma imenso navio alemão que atracava pelos portos da Europa, à procura de loucos que vagassem errantes pelas cidades européias. Muitas dessas naus navegavam pelas águas calmas dos rios da Renânia e pelos canais flamengos, transportando em seus convés loucos que antes perambulavam sem destino pelas cidades da Alemanha. Confiados aos marinheiros da Narrenschiff, centenas de loucos eram encarcerados nesses navios, tomados como prisioneiros do próprio destino na imensidão do mar, onde o louco é um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentados à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem(14).

As internações nos hospícios não eram vistas pela psiquiatria como arbitrárias, nem tampouco como privação autoritária da liberdade individual. O seqüestro do louco era pensado com um bem social, um ato necessário para o bem-estar e proteção da coletividade. Para contornar essa contradição, a psiquiatria justificava as internações nos hospícios com desculpa essencialmente “científica”: os insanos eram pessoas incapazes de guiar-se por si próprios e, por terem estatuto de menores de idade, deveriam ter a conduta cuidadosamente regulada por psiquiatras.

Da mesma forma, o internamento não era concebido na cura da loucura ou do alcoolismo, mas sim como forma de adestrar instintos exaltados, controlar ânimos revoltos, deixando de lado coisas como diagnósticos e tratamentos adequados para cada caso.

Dessa forma, as internações tinham como alvo a punição, a necessidade moral e a correção de quem era internado, e a sua existência promovia o controle da estrutura familiar, das normas sociais e das normas da razão.

Chegamos a uma forma de controle que não é somente formulada e efetuada pelo poder judiciário (que é insuficiente), mas também pela rede de poderes laterais que estão à margem do judiciário, ao qual se inserem os hospitais psiquiátricos. O projeto republicano de reforma, ampliação e modernização de presídios, manicômios, hospitais públicos e escolas, no início do século, baseou-se nessa filosofia. A modernização dessas instituições visou envolver o indivíduo em vasta rede de poder ao longo de sua existência, com a função de disciplinar não apenas a população, mas também o espaço urbano de forma brutal e discriminatória.

De uma maneira geral, a associação entre loucura e alcoolismo na obra de Lima Barreto retrata as diretrizes de uma psiquiatria que se lançou com todo o vigor para combater as manifestações comumente associadas às práticas consideradas anti-sociais que, no caso de consumo excessivo de álcool, aparecem como produto de degeneração coletiva ou tara hereditária herdada através de gerações. A inserção de diversos trechos de confissões de Lima Barreto, correlacionando os temas, produz recorte privilegiado para ilustrar a problemática das internações de alcoólatras em hospícios. Enfim, nos seus escritos literários, constatam-se a freqüência e a constância da construção de imagens deturpadas sobre os alcoólatras que, na ótica da psiquiatria higiênica, são também responsáveis pela degenerescência dos indivíduos e constitui também séria ameaça à organização moral e social da sociedade. O álcool é inaceitável para aqueles que ultrapassam a fronteira. Mas onde se encontra a fronteira? A seu modo, o hospício aparece como instituição complementar à prisão. Lima Barreto não só sabia disso tudo como também o experimentou. Foi um escritor negro que tinha um trabalho que o faria respeitado e uma família que posava de correta embora, para ele, uma boa dose de Paraty valesse mais que uma jornada burocrática no Ministério da Guerra.

 Marco Antonio Arantes

Mestre e Doutor em Ciência Política pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP.

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