domingo, 4 de junho de 2017

Artigo de Opinião - A obsolescência do amor - Miguel de Almeida

Nem Marx nem santo Antônio conseguiriam solucionar as enormes expectativas criadas pela indústria do amor


Uma curandeira mineira foi processada por uma cliente insatisfeita com seus serviços. Levada ao tribunal, a Justiça considerou improcedente a reclamação. A inusitada profissional oferece em faixas trazer de volta o seu amor. Cobra R$ 10 mil por execução.

Foi o que ela mais uma vez fez. Ao que parece, é alguém respeitada nesse departamento de resgate amoroso: trouxe de volta o desprotegido pagão em cinco exatos dias. Ocorre que a contratante exigia o capturado mais manso, bovino e de cabeça baixa. Ele retornou ao lar, sim, mas indomável. Um diabo, no relato incorporado ao processo.

A megera (desculpe, Maria), impossibilitada de responsabilizar os astros e os deuses, processou a curandeira. Perdeu na primeira instância. Meu herói Richard Burton, por quem ainda hoje cultivo renitente inveja, poderia ser nomeado como o culpado de sempre. Na década de 1880 traduziu para o inglês as histórias de “As mil e uma noites”. Sátiro com fleuma, encheu de notas de rodapé o relato persa e deu destaque exagerado às estripulias de Eros, deus de amor grego. Seria uma das raízes do maléfico amor romântico.

A aristocracia holandesa contemporânea de Vermeer e Frans Hals também fez sua contribuição ao cadafalso, quando transformou a esposa em companheira, amante e confidente. Até então, esses eram departamentos separados. Não se pensava em fazer sexo selvagem com sua senhora, tá louco. Afinal, os casamentos eram arranjados para atender interesses de poder e sucessão. Você não se apaixonava pela sua esposa. Para isso, existia a amante.

Burton por certo não poderia imaginar que sua contribuição ao mundo ocidental pudesse dar em Peppino di Capri e Djavan — autor da pérola “o amor é azulzinho”. O explorador que buscou a nascente do Nilo, enfrentou tribos hostis africanas, navegou pela Amazônia (seus dois volumes com o registro de suas viagens pela região me inspiraram a escrever meu “Trilha nos trópicos”, Maria) e foi cônsul em Santos, se encontra na base da indústria que vive às custas de explorar o amor romântico.

Os poetas românticos, em geral chatos idealistas, a seguir contribuíram com os exageros como morrer por amor, a melancolia excessiva trazida pela paixão fugidia, o desencanto com a vida sem a amada.

Como Marx, acredito que o capitalismo seja criativo porque soube transformar o amor romântico numa mercadoria de valor tangível. Pela mão da publicidade e do cinema, forjou-se no mundo ocidental um tipo de comportamento hoje responsável por tamanha infelicidade, sucessão de desencontros e coisas como os resorts e o muxoxo Xuxuzinho.

Os crédulos na existência de uma alma gêmea sacrificam suas vidas numa busca desavergonhada, permeada de má literatura, música brega e frases feitas, e se consolam quando percebem que os deuses também falham, como mostra o recente desenlace midiático de Angelina Jolie e Brad Pitt.

Nem Marx nem santo Antônio seriam hoje capazes de solucionar a montanha de expectativas criadas pela indústria do amor. Simplesmente pelo fato de ser quase impossível alguém suprir os quesitos ditos imprescindíveis de amizade, sexo, compreensão, humor, companheirismo e solidariedade.

Sobra para santo Antônio e para curandeira mineira.

Logo a coisa acaba no Supremo.

O estupendo historiador Roman Krznaric lembra que os gregos antigos listavam vários tipos de amor. Quis a ignorância e a simplificação dos tempos modernos juntar todos nas costas de uma única pessoa — a tal alma gêmea.

Eram mais complexos os arranjos, assim como o são os seres humanos. Imagine que o próprio Homero colocou Polifemo dizendo à sua Galateia: “Ó, és mais branca aos meus olhos do que leite coalhado... Mais lustrosa que uma uva verde”. Ao que eu me lembre, ela não caiu nessa conversa fiada.

A agenda contemporânea coloca várias tarefas na lousa. Ir à Disney com os filhos, ser bem-sucedido, participar das obrigações caseiras, frequentar a academia e deixar o último pedaço do pudim para o seu amor. Não há santo que resista.

Krznaric fala da necessidade de se repensar o amor. É bem provável que a geração digital aos poucos esteja dando uma resposta aos ditames do mercado — sim, como Marx, penso que nesse caso sejamos escravos das leis de oferta e procura.

Pesquisas recentes em várias capitais indicam que a garotada deixou de desejar objetos de consumo e de comportamento herdados à geração de nossos avós. Não querem ter carro (portanto, não dirigem), não querem casar (filhos: esperem para nascer) e não querem comprar casa (ao contrário de Lula).

Outros estudos constatam a frivolidade das relações. Você não namora, você fica. Os céticos falam em falta de compromisso, na fluidez dos arranjos. Besteira. O amor é um fato cultural. Numa levada só, a geração digital derrubou as indústrias da construção, do automóvel e do amor romântico.

Por isso, Maria, a repercussão de “Paterson”, que exalta os diversos tipos de amor.



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stest

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