quinta-feira, 11 de maio de 2017

Crônicas do Dia - A Jovem Guarda contra a ditadura - Artur Xexéo

A Jovem Guarda contra a ditadura

Muito mais que um cantor da Jovem Guarda, Jerry Adriani era um cantor de protesto


A morte de Jerry Adriani recuperou uma categoria entre os cantores de música popular no Brasil: a de cantor da Jovem Guarda. Todos os obituários se referiram a ele nessa categoria. Foi mesmo? Se considerarmos como Jovem Guarda o programa de televisão que Roberto Carlos apresentou entre 1965 e 1968, na TV Record de São Paulo, muito pouca gente participou do movimento. Havia Roberto, Erasmo Carlos e Wanderléa, é claro. E o Trio Esperança e os Golden Boys. E Renato e seus Blue Caps e os Jet Blacks. E Cleide Alves. E mais uma ou outra participação eventual de Demétrius ou de Ronnie Cord, que já estavam na estrada da música jovem há mais tempo.

Nunca associei o nome de Jerry Adriani à Jovem Guarda. Acredito que ele tenha participado de algum dos programas apresentados por Roberto, mas não a ponto de ser identificado com o que virou um movimento. Na verdade, Adriani fazia parte da turma rival da Jovem Guarda, aquela que participava de “O bom”, na TV Excelsior, no mesmo horário — nas tardes de domingo — da “Jovem Guarda” de Roberto. Os apresentadores eram Eduardo Araujo e Sylvinha. E os cantores tinham uma pegada mais romântica que a turma da Record. Eles eram Joelma, Rosemary, Vanusa, Wanderley Cardoso e... Jerry Adriani. Não acredito que a participação de Jerry Adriani em “O bom” tenha durado muito tempo. Na mesma época, ele apresentou o programa “A grande parada”, na TV Tupi, uma parada de sucessos que tentava competir com “Rio hit parade”, uma atração do mesmo gênero que atraía audiência na TV Rio.

No começo dos anos 70, esses programas todos saíram do ar. E a geração de cantores jovens que faziam parte deles passou a ser reconhecida como a turma da Jovem Guarda. Até os que nunca cantaram no show dominical de Roberto Carlos foram abrigados pelo gênero. Também ficaram com uma aura de cafonas. Roberto escapou. Mas os outros penaram para serem vistos com algum talento além da cafonice explícita. Jerry Adriani não passou por isso. Ele já era cantor antes da Jovem Guarda, tinha seu próprio programa durante a Jovem Guarda e trilhou um caminho próprio depois da Jovem Guarda.

O sucesso estrondoso da Jovem Guarda durou três anos, os três últimos anos da década de 60 do século passado. Coincidiu com o auge da ditadura militar. Mas quem fazia oposição era a MPB. A Jovem Guarda era alienada. O pau estava comendo, mas o mundo se resumia a namorinhos de portão e passeios de calhambeque. Sou testemunha de que, com Jerry Adriani, não era bem assim. Ficou registrado que seu maior sucesso foi “Doce, doce amor”, de Raul Seixas e Mauro Motta. Nos noticiários de TV sobre sua morte, a canção foi lembrada várias vezes. Pois lembro-me que, há pouco mais de 30 anos, eu editava uma revista dominical que vinha encartada num jornal de grande circulação. Uma das melhores repórteres da publicação, Helena Carone, sugeriu um perfil de Adriani. Ele estava de novo na onda por causa da semelhança de seu timbre vocal com o de Renato Russo, que estava surgindo nas paradas. Pauta aprovada. Na entrevista, Adriani perguntou se a repórter conhecia “Doce, doce amor”. E cantou um trecho para ela:

“Doce, doce amor

Onde tens andado, digas, por favor

Doce, doce amor

Doce, doce amor, que eu vou te encontrar

Meu bem, seja onde for”

Depois, ele piscou um olho para ela e perguntou: “Sacou?”. Ela não tinha sacado. Ele, então, revelou toda a verdade: “Doce, doce amor era a liberdade”. Uma metáfora contra a ditadura. Muito mais que um cantor da Jovem Guarda, Jerry Adriani era um cantor de protesto.

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O último festival de música brasileira importante foi o FIC de 1970. Nele, realizado pela Globo no Maracanãzinho, revelou-se Ivan Lins (“O amor é meu país”) e aconteceu a explosão de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar (“BR-3”, interpretado por Tony Tornado). Belchior foi a raspa do tacho. Ele apareceu um ano depois no Festival Universitário do Rio de Janeiro, uma promoção da TV Tupi, com a surpreendente “Hora do almoço”, que acabou ganhando o primeiro lugar no concurso.

Depois, já longe dos festivais, foi um sucesso atrás do outro. Belchior, como todo mundo que pretende inovar, vinha para derrubar o já estabelecido. A letra de “Apenas um rapaz latino-americano” é um cartão de visitas e uma carta de intenções.

“Não me peça que eu lhe faça

Uma canção como se deve

Correta, branca, suave

Muito limpa, muito leve

Sons, palavras são navalhas

E eu não posso cantar como convém

Sem querer ferir ninguém”

A geração que surgiu na era dos festivais ainda está aí. Nunca houve um grupo tão duradouro, tão resistente, tão talentoso na música brasileira como o que mostrou suas primeiras canções nos festivais promovidos pelas TVs Record, Excelsior e Tupi. Belchior foi o último a chegar e trouxe a frase definitiva que define seus admiradores: “Nossos ídolos ainda são os mesmos”.

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A cidade está abandonada.



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