A proposta de liberar a contratação de funcionários terceirizados para qualquer tipo de atividade foi sancionada no dia 31 de março pelo presidente Michel Temer
A terceirização entrou em pauta com força no Congresso Nacional nos últimos dias. Por falta de um, dois projetos de lei (PL) relacionados ao tema estavam sendo debatidos. Um deles, o PL 4302/1998, foi aprovado no Senado Federal há 18 anos (quando o presidente Michel Temer estava à frente da Câmara dos Deputados). Por ter sofrido alterações, precisou voltar para análise dos deputados, que aprovaram o texto na semana passada. O projeto foi sancionado pela presidência na noite do dia 31 de março e já está em vigor. O texto libera a terceirização irrestrita de atividades fim e meio (entenda os conceitos no quadro abaixo), dos setores público e privado. A segunda proposta é o projeto de lei de conversão (PLC) 30/2015. Considerada mais branda, ainda está em tramitação no Senado e prevê terceirizar apenas as atividades meio do setor privado.
Terceirização é uma forma de organização do mercado de trabalho, em que a empresa contratante pode transferir a uma outra empresa a responsabilidade por determinadas tarefas. Não há vínculo empregatício da contratante com os funcionários terceirizados, que devem responder à empresa contratada. Ou seja, um funcionário de uma empresa terceirizada não pode receber ordens nem ter seus horários de entrada e saída controlados por um gerente da organização que contratou o serviço. Outro ponto importante é que os funcionários terceirizados também têm direitos trabalhistas, como 13º salário, férias e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). A diferença é quem paga o salário e benefícios da pessoa é a prestadora de serviços.
Atividade-fim é aquela que identifica o principal objetivo de uma organização. Por exemplo, numa escola, a atividade-fim é ensinar. Isto é, os professores são os profissionais que exercem a principal função da instituição. Pela regra atual, esse tipo de atividade não pode ser delegado a terceiros, ou seja, o corpo docente precisa ser contratado pela escola.
Atividade-meio é aquela que não é relacionada ao objetivo final da empresa. Tomando novamente o exemplo de uma escola: a faxina e a merenda são muito importantes para o funcionamento da instituição, no entanto, não consistem nas funções primordiais da unidade. Hoje, os funcionários que exercem atividades-meio podem ser – e em muitas redes já são – contratados por empresas prestadoras de serviço.
Um dos argumentos principais dos defensores da terceirização é o fato de que a divisão de tarefas específicas entre empresas especializadas aumenta a produtividade. “Terceirizar atividades-meio é inevitável na economia atual. Algumas empresas precisam disso para ter condições de viabilizar técnica e economicamente o negócio, pois, quanto mais complexo o tipo de produção, mais necessário é contratar serviços fora da atividade principal, para simplificar a operação. No entanto, é falho liberar todas as formas de terceirização, inclusive de atividades-fim”, diz Antônio Rodrigues de Freitas Jr., professor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). No entanto, para profissionais da Educação, a concepção de produtividade numa escola levanta uma questão delicada. “A Educação é um direito que tem que ser desenvolvido de forma solidária. No momento que eu coloco a concepção de produtividade no centro, saímos do âmbito do direito social, humano, de construção coletiva”, explica Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), órgão que publicou uma nota contrária à proposta.
Para além desse argumento, existem efeitos que podem atingir a área a médio e longo prazo agora que a proposta de terceirização irrestrita, de atividades meio e fim, no setor público e privado, foi sancionada. Entenda:
Efeito 1: Fim da carreira de professor concursado
A aprovação permitirá que as atividades-fim possam ser terceirizadas. Por hora, os servidores públicos efetivos, grupo do qual fazem parte os professores concursados de escola pública, estariam seguros. “Para demitir o servidor concursado precisaríamos mudar a Constituição Federal. Pelas leis atuais, eles só poderiam perder o cargo em um processo administrativo”, diz Márcia Jacomini, professora e pesquisadora nas áreas de Políticas Públicas para Educação e Gestão Educacional da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No entanto, a médio e longo prazo, estaria posta a possibilidade de terceirizar as próximas gerações docentes em municípios e estados e abandonar os concursos públicos.
Uma situação como essa acarretaria em um período de transição, em que se teriam professores efetivos e terceirizados dividindo as mesmas tarefas na escola até que os concursados se aposentassem. “Esse processo já ocorreu com os profissionais da limpeza. Antes, eram todos servidores públicos e, em determinado momento, os funcionários terceirizados começaram a chegar, exercendo a mesma função, no mesmo espaço de trabalho, mas com contratos diferentes”, explica Márcia.
Na visão de Fausto Augusto, coordenador de Educação e comunicação da Escola do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), é improvável que a terceirização completa de professores ocorra. Isso porque, hoje, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) tem uma parte reservada obrigatoriamente para o salário docente. “Não é possível saber se esse recurso poderia ser gasto com profissionais terceirizados. Se não for possível, nenhum estado ou município vai terceirizar o professor porque eles dependem desse recurso para remunerá-lo”, explica. Além disso, Fausto aponta que os processos de contratação de uma empresa precisam ser feitos por licitação ou contrato emergencial. “Vale a pena entrar nesse processo? Essa será outra discussão ampla para os entes federados.”
Efeito 2: Diminuição dos salários ou o fim da Lei do Piso
Segundo Luiz Colussi, diretor de assuntos legislativos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), entidade que representa cerca de 4 mil juízes, o problema de se tornar um funcionário terceirizado é o fato de que, na prática, esses trabalhadores recebem menos do que os empregados diretamente. “A medida que os cargos públicos forem sendo desocupados, essas vagas podem retornar ao mercado como terceirizadas. Sem vagas para concursados, que oferecem algumas garantias, como vencimento mínimo de acordo com o piso nacional, o trabalhador pode se sujeitar a trabalhar por um salário menor”, explica. Um estudo divulgado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelo Dieese, em 2014, mostrou que trabalhadores terceirizados recebiam 24,7% a menos do que os diretamente contratados pela empresa. Além disso, eles cumpriam, em média, uma jornada semanal de três horas a mais e estavam mais propensos a acidentes de trabalho.
Para Márcia, da Unifesp, o processo de terceirização poderia levar até a uma mudança na Lei do Piso do Magistério, aprovada em 2008, ou mesmo o fim dela. “Também não haverá garantias, por exemplo, de que os terceirizados terão o direito de dedicar um terço da jornada a atividades extraclasse, direito garantido aos professores de escolas públicas hoje”, diz a pesquisadora. Nesse cenário, a meta 17 do Plano Nacional de Educação (PNE), que prevê a equiparação do salário médio do magistério aos demais profissionais com escolaridade equivalente, provavelmente seria inviabilizada.
Efeito 3: Desarticulação dos docentes
Outro possível resultado da terceirização é a desarticulação da categoria docente nas lutas por condições de trabalho. “A terceirização pulveriza a organização da classe trabalhadora, pois funcionários terceirizados não são mais representados pelos sindicatos da Educação”, diz Heleno, do CNTE. Isso faz com que movimentos de reivindicação de direitos ou mobilização contra alguma proposta, como os que têm acontecido no país no último mês (inclusive liderados pelo CNTE), percam a força. Saiba mais como as greves trabalhistas são articuladas aqui.
Efeito 4: Descontinuidade do corpo docente
Márcia, professora da Unifesp, coloca outra possível situação: caso uma prefeitura terceirize todos os professores de uma escola e o contrato seja rompido em determinado momento, todo o corpo docente precisaria ser trocado da noite para o dia. “Isso seria gravíssimo, pensando no ponto de vista de conhecimento, comprometimento e continuidade das atividades previstas no projeto político-pedagógico (PPP)”, diz Márcia.
Há ainda altos riscos trabalhistas. “Um cenário que ocorre bastante é as empresas prestadoras de serviço fecharem e sumirem sem pagar os direitos dos trabalhadores. A justiça passa meses tentando entrar em contato com a organização, que alega não ter condições de arcar com os custos. Só depois de provado que isso é verdade, a empresa contratante será procurada”, explica Luiz Colussi, da Anamatra. Esse tipo de processo é o que se chama de responsabilidade subsidiária, proposto pela lei que foi sancionada por Temer. Outro tipo de responsabilidade possível é a solidária, prevista no PLC 30/2015, considerado mais brando e ainda em tramitação no Senado. Nesse caso, a empresa que contratou e a organização prestadora de serviços são acionadas ao mesmo tempo caso os trabalhadores não tenham sido pagos.
Efeito 5: Compromisso com a empresa e não com a escola
Fausto Augusto, coordenador de Educação e comunicação da Escola Dieese, acredita que a gestão das escolas tem uma tendência maior à ser terceirizada do que o corpo docente. Seria algo como já acontece em algumas instituições de ensino administradas por organizações sociais (OS) e organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). “O risco é que os gestores não sejam servidores públicos com compromisso exclusivo com as escolas e com o Estado, mas compromissados com a empresa que os contratou”, reflete Márcia, da Unifesp.
Efeito 6: Tirar a reforma do Ensino Médio do papel, com a oferta de todos os itinerários formativos
Uma das principais propostas da reforma recém-aprovada do Ensino Médio é flexibilizar o currículo e ofertar cinco percursos de aprendizagem para os estudantes da etapa (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional). No entanto, pode custar muito caro para uma escola conseguir oferecer todos, pois demandaria a contratação de mais profissionais e melhorias na infraestrutura necessária para desenvolver um bom trabalho. Segundo Fausto, do Dieese, uma alternativa seria terceirizar a estruturação dos percursos. “Do ponto de vista financeiro, faz sentido terceirizar essa demanda. O que impediria uma faculdade de Engenharia, por exemplo, criar e vender cursos de Matemática ou Ciências da Natureza para os estados?”, questiona.
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