Há filmes que, pela importância do tema, justificam alguns excessos. No caso de “Martírio”, a marca de 160 minutos constitui um provável empecilho para chegar ao circuito comercial e ao espectador em busca de diversão. É uma pena, porque sua duração é plenamente justificada e necessária, sobretudo quando um candidato à Presidência da República já antecipa uma de suas plataformas: não demarcará um centímetro de terras indígenas, ou seja, sem meias-palavras, ele (e muitos outros) defende um plano de extermínio de seres humanos, com sua história, religião e cultura.
Com direção do documentarista e indigenista Vincent Carelli — realizador de “Corumbiara” e criador do projeto Vídeo nas Aldeias, com o qual deu equipamentos, imagens e voz aos “selvagens” deste país —, “Martírio” oferece um quadro político e histórico impactante.
De um lado, sobreviventes da tribo guarani kaiowá, em marcha pela retomada de seus territórios no Mato Grosso do Sul. Um movimento iniciado há 20 anos, filmado por Carelli e interrompido por massacres, mortes e suicídios. O diretor retomou o projeto (em colaboração com Ernesto de Carvalho e Tita Almeida) e ouviu as várias partes da questão. De um lado, sobreviventes maltrapilhos, muitos sem dentes ou sem visão, alguns “armados” com pedaços de pau e dispostos a morrer (e tantos morreram) pelo direito de existirem como povo e cultura, viverem da natureza, abrindo mão de qualquer cesta básica. Em um país com a dimensão do Brasil, difícil imaginar que tamanha ambição fosse travar a economia nacional protegida com tanto zelo pelas autoridades.
Carelli também é generoso com o outro lado, e ouviu, com extrema paciência, representantes do agronegócio, defendidos por caciques da bancada ruralista no Congresso Nacional, que clamam pela paz através do extermínio desses “invasores de terra contrários ao progresso o país”. Pois é.
Muitas vezes, as falas dos índios não têm tradução. E não é necessário. A indignação, a revolta, a tristeza, e também a dignidade e a resistência estão expressas em cada depoimento de velhos e jovens — e no olhar das crianças.
Para fundamentar seu manifesto explícito sobre uma injustiça histórica, Carelli recupera trechos de filmes e cinejornais e retrocede à Guerra do Paraguai para contar avanços e retrocessos da convivência entre índios e brancos, até chegar a Brasília nos dias atuais. Sua intenção (ou ilusão) é contribuir para modificar um final tristemente previsível: aqueles índios estão marcados para morrer.
Jornal O Globo
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