terça-feira, 21 de março de 2017

Crônicas do Dia - Palavras de desprezo e de amor - Cora Ronai

Temer acredita que para agradar uma mulher basta abrir a porta do carro com condescendência


Sim, eu sei — o Dia Internacional da Mulher foi na semana passada e está tão longe que dá para ver os dinossauros trotando no calendário. Mas a minha coluna já estava escrita, e provavelmente impressa, quando o presidente Temer veio a público nos cumprimentar por cuidarmos tão bem dos filhos. Extravasei no Facebook, que, como diz um amigo, é a maior UTI de todas, mas ainda estou com a indignação entalada na garganta. Uma coisa é o tiozinho idiota da família fazer observações infelizes durante o churrasco de sábado; outra é o presidente arrotar a sua mentalidade vitoriana urbi et orbi.

“Ah, não é para tanto, ele estava só fazendo um elogio à maneira dele!”, exclamou alguém por lá.

Mas esta é, justamente, a pior parte: a sua maneira. Temer é o que há de retrógrado na política e na sociedade, um homem que parou no tempo e que acredita que tudo o que precisa fazer para agradar uma mulher é abrir a porta do carro com condescendência. Ouvir ofensas de alguém que sequer se dá conta de que está ofendendo é duplamente ofensivo.

“É só uma questão geracional”, escreveu mais alguém. “Seu pai e seu avô não diriam a mesma coisa?”

Não. Nem meu pai, nascido em 1907, nem meu avô, nascido em 1891, diriam a mesma coisa. Ambos tinham plena consciência de que homens e mulheres têm o mesmo potencial e ambos criaram filhas para enfrentar o mundo, não para ir ao supermercado.

O pior é que nem posso dizer que tenha ficado surpresa com as palavras de Temer. Ele seguiu à risca o script que se adivinha na sua figura anacrônica. Também não posso dizer que esperava mais inteligência ou astúcia da sua parte. Uma pessoa inteligente não aceitaria ser vice de Dilma Rousseff.

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Na internet, muitas pessoas atribuíram o desastre a uma falha na assessoria, que ou teria errado no tom, ou não teria aconselhado corretamente o presidente. Temer, dizem, foi “mal assessorado”. Desculpa clássica — e furada. Assessorias assessoram nos detalhes, não na essência.

Temer é o seu discurso: basta olhar para ele e para a maneira como se conduz.

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A única coisa positiva dessa história toda é que o discurso foi tão caricato e tão universalmente criticado que talvez tenha servido pelo exemplo inverso, mostrando aos idiotas como não se deve pensar — e muito menos falar — no ano de 2017.

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“Ah, então você quer os discursos da Dilma?”

Não, não quero.

Eu quero um presidente que consiga fazer um discurso bom, bem pensado e bem escrito, compreensível, sem demagogia, sem incitações ao ódio, sem erros de português ou de raciocínio; um presidente que saiba se comunicar e, sobretudo, que tenha o que comunicar.

A maneira como as pessoas falam denota o que elas pensam, o que elas são.

Não há um político nesse país, ou talvez haja uma meia dúzia, mas quase nenhum em cargo elevado, que eu consiga ouvir sem perceber o populismo, o pensamento tacanho, a má-fé, a falta de cultura, de patriotismo e de ideias, o desprezo mais absoluto pela inteligência dos cidadãos.

Cada vez que um político abre a boca, eu me sinto insultada.

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O Facebook é um caldeirão de confusão e de intolerância, uma terra de ninguém onde se lê muita bobagem e onde, com frequência, é fácil perder a fé na Humanidade. Às vezes, porém, a gente encontra momentos de genuína beleza, e todas as horas perdidas se justificam. Foi o que me aconteceu no domingo, quando li o que a Luciana Barreiro Bastos Arnaud escreveu:

“Anteontem eu caminhava na rua aqui perto de casa e vi meu marido do outro lado voltando do trabalho. Eu estava toda fogueteira indo encontrar amigas para um chope de happy hour. Me entristeci com o que captei da imagem dele. Ele estava com fones no ouvido, os passos largos de sempre, mas a cabeça baixa e o movimento corporal me pareceram evidência incontestável de que carregava um mundo pesado demais nas costas.

Esta rua na qual caminhávamos tem um pequeno canal no meio. Não dava pra atravessar. Gritei: ‘Juuuu, Julio Céeeesar’. Nada. Gritei mais alto, acenei gritando mais, gritei de novo, até que ele levantou a cabeça, olhou na minha direção e quando me viu abriu o sorriso lindo de sempre. Todo o corpo dele mudou. Eu vi. Naquele instante ele largou o tal peso nas costas que eu avistara antes.

‘Vou ali encontrar as meninas’, eu disse. Ele mostrou uma sacola das Lojas Americanas e falou: ‘Comprei copos’. Retruquei: ‘Os meninos estão todos em casa’. Ficamos nos olhando por breves segundos, e eu gritei um dos ‘eu te amo’ mais gostosos da minha vida.

Hoje fazemos 23 anos de casados. Um mundo feito de tanto, mas tanto bem-querer em meio aos desafios da vida que é quase impossível descrever.

Bora, meu Ju, bora pra novidade que será nossa vida daqui pra frente sem o pior do ‘peso nas costas’, e com todo nosso amor. Te amo demais, Júlio Arnaud.”



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/palavras-de-desprezo-de-amor-21068239#ixzz4byBjOXl5

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