quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Artigo de Opinião - Gabriel Chalita: Sobre a inocência

O DIA
Rio - Era menina ainda quando disse que gostaria de ser freira ou médica ou professora. Um dia, mudou de ideia e afirmou que seria bailarina. Foi a uma festa, em um fim de ano, em uma escola, em algum canto por aí. Cantaram, também, alguns meninos. Um coral preparado com esmero por uma professora que sorria ao seu piano vendo seus pupilos brilharem. Estavam todos uniformizados. Até os cabelos. Até o jeito de mexerem os braços e agradecerem os aplausos.

Era uma escola pública. E o público, composto majoritariamente pelos familiares, vibrava com os seus. A menina, a que já quis ser tanta coisa, procurava os pais. Como fazem as meninas e os meninos nessas apresentações. Há muitas pessoas, mas o olhar mais doce é revelado, primeiramente, aos pais.

Ela os encontrou. Estava vestida com a roupa de bailarina. A mãe não se continha de emoção. Era a única filha. A outra se fora prematuramente. Atropelada por um trem. Isso mesmo. Estavam alguns amigos atravessando a linha de ferro. Ela teve medo e parou. Eles insistiram, e ela foi. Foi, titubeante, e aconteceu o horror. Um corpo sem vida esmagado por um trem.

A irmã nunca se esqueceu disso. Ela não estava junto. Era muito pequena. Mas ouviu tantas vezes os relatos, viu tantas lágrimas e gritos de dor da mãe e do pai, que a história a frequentava desde sempre. Mas, ali, o sorriso dos pais parecia uma pausa à dor que viveram. Uma se foi. A outra brilhava.

O tempo foi passando, e a menina foi crescendo. Sempre muito religiosa. Sempre muito prestativa com os seus. Achava-se responsável por trazer alegria. E fazia sua parte. A menina virou mulher. Casou. Teve filhos. O primeiro recebeu o nome da irmã. O segundo, o do marido. Teve o privilégio de se casar com o homem dos seus sonhos. No dia em que foi bailarina, ele foi cantor. E se olharam, ainda sem saber o que seriam. O terceiro filho também veio. 

Ele não tinha mãe. Apenas o pai e ninguém mais. A mãe morrera em um acidente de carro em que o pai era o motorista. Não teve culpa. Sentiu-se culpado. Acreditava ele ser o responsável por trazer alegria ao seu pai. 

Ele formou-se médico. Ela, professora. Escolheu preencher os seus dias preenchendo vidas de significados. Lembra-se ainda do primeiro dia em que pôde entrar em uma sala de aula e ensinar. Dos olhos das crianças. Das suas dúvidas — das crianças e das dela. Do medo de tropeçar. Tropeçou, talvez, algumas vezes. Mas prosseguiu. A filha que recebeu o nome da irmã que se fora resolveu ser freira. O filho com o nome do pai é bailarino. E o terceiro é também professor.

Quando se lembra dessas histórias, lembra-se de um tempo que se foi. De uma inocência difícil de ser reinventada. Lembra-se do primeiro dia em que ela e o marido deram as mãos. Eram adolescentes, apenas. Ele a pediu em casamento. Ela disse que perguntaria à mãe. Ele disse que não era para aquele momento, mas que já queria selar um secreto compromisso de amor. Ela sorriu. Achou bonito. Ele a beijou no rosto. Ela ficou corada. E se despediram. Só começaram a namorar quando estavam na faculdade. Casaram-se depois da formatura dela e um pouco antes da formatura dele. Os pais estavam presentes.

O padre pediu para que os dois improvisassem algum dizer de amor. Ele disse que se apaixonou por ela quando a viu de bailarina. Ela apenas sorriu e, timidamente, disse que se apaixonou por ele no mesmo dia. 

Os pais dos dois já não mais estão com eles. Foram encontrar os que já se foram. Há os filhos. Há lembranças de ontem e muitas vontades a serem realizadas. Nos dois, há um sentimento que permaneceu das dores que viveram. Têm eles a consciência de que nasceram para trazer alegria. Aos pais. A eles mesmos. Aos alunos e pacientes. Aos que encontram por aí.

Quando veem alguma fumaça, lembram-se dos tempos da claridade. Na idade de hoje, são capazes de viver as idades que se foram. Sabem que não são perfeitos. Estranhamentos há em toda família. Mas há algo que os mantém inteiros. Inocentemente, continuam a se amar.



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