terça-feira, 11 de outubro de 2016

Crônicas do Dia - Rio de quê? - Arnaldo Bloch

Na mesma cidade onde reinam Aldir, Guinga, D2 e suas obras, viceja também a obra de Eduardo Cunha


Há várias, infinitas, cidades numa cidade. Daqui até a rodada final das eleições para prefeito, os Marcelos vão discutir questões pontuais e, talvez, alguns temas públicos, e deixarão de fora, com certeza, o Rio subjetivo que corre em cada eleitor carioca e reverbera em suas tribos, cenas, arenas; em seus conclaves, sonhos e abismos.

Pois, se o Rio é de Janeiro e de carnaval, é também Rio de cortejos do mal.

Dos presuntos sem nome, sem nota e sem motivo. Dos restos derramados, desmembrados, nas belas encostas.

Na mesma cidade onde reinam Aldir, Guinga, PC, D2 e suas obras, viceja também a obra de Eduardo Cunha, nos subterrâneos do novo império, inviolável.

O Rio é de Cabral pai — e de Cabral filho. É Rio de paz — e de Paes.

É Rio de renovação urbana, mas também é Rio das contas que ainda não chegaram e que correm, à boca.

O Rio de empreitadas cobertas de vergonha, do jardim que floresce de um estranho adubo, quieto, oculto, atento.

É Rio das boas malícias e das péssimas milícias, amigas de tantas cabeças coroadas, peste que toma conta de tudo sem que nada se possa, de fato, fazer.

Rio dos terreiros — e dos que perseguem o samba e incendeiam inocentes orixás, que pregam o ódio às raízes e enchem as bancadas de todos os cleros.

É o Rio dos Jogos e o Rio vazio que, no coração da gente, ficou.

É o Rio do mar — e o Rio dos rios, sujos, que nele vão desaguar. Rio da lama de ontem e das tempestades ainda a desabar.

Pois o Rio de “Ai de ti”, Rubem, está aí.

É o Rio que se gaba, que maquia a superfície das águas — e o Rio que baba a Baía a cujo nome prometeu fazer jus. Rio que não se merece, que se esquece, que some.

É o Rio que ocupa, que se preocupa — e o Rio que não se desculpa, nunca. O Rio que se manifesta — e o Rio convidado para a festa.

O Rio das bombas, das trombas d’água, dos palácios, das paliçadas, dos palhaços.

É o Rio das novas bifurcações!, das vias, dos desvios, das linhas, dos corredores, das inaugurações definitivas, dos legados!

E também o Rio das passagens caras, do pânico da gratuidade, do asfalto pastoso, do acabamento tétrico, do buraco que sempre abre, da ciclovia que vem abaixo.

O Rio generoso, misturado, diversificado, multicultural — e o Rio que se finge disso, no surfe das conveniências, mas torce o nariz assim que deixa o eveiiiinto e aspira, aliviado, o couro do Porsche.

O Rio das favelas, que jamais se revela, que se quer exterminar, remover, não mais ver, Rio que só quem entra sabe que Rio é — que não é só um, que são tantos e pelos quais tão pouco se faz, e em cujo bojo guerreiam poderes em hipócrita e oficiosa interclusão.

O Rio das falas, o Rio das valas, das balas.

O Rio às favas, às armas.

O Rio do galo que insiste, às quatro.

Rio da pamonha fresca, do comprador de material velho, do mamão que tá um mel — e o Rio do fel, do gás e do gato.

O Rio dos botecos customizados e dos pés-sujos, resistentes, penitentes.

O Rio dos velhos bordéis — e o da cafetinização explícita das relações nas portas de boates e clubes chiques.

O Rio das obras e das sobras, do lixo fixo, do cheiro de merda nas calçadas em torno do Balança ou do sofisticado excremento que boia na Visconde de Albuquerque.

O Rio de Chico, transcendente — e o Rio dos imbecis e dos imprudentes.

O Rio de velhos contadores de histórias, de maltrapilhos de cartola na Lapa.

E o Rio corporativês dos analfabetos funcionais com diploma universitário.

O Rio de Dapieve — e o Rio de Malafaia.

O Rio do Calbuque — e o Rio do muque.

O Rio da puque e o Rio da uspe.

O do Jobi. Do Siri.

Rio de Candeia. Rio das cadeias.

Rio do um. Rio do som.

Rio do bom. Do Nelson. Do Chicabom.

Rio de sangue. Rio do Mangue.

Rei de Ramos.

Rio, aqui estamos.

Rio do abraço, do abraçaço, do aço, do prego e do “cadê o eco?”.

Rio dos palitos, do camarão frito, dos ovos coloridos, e, à noite, os estampidos.

Rio do caminhão, da longa estrada, do conto de fadas no chão da Bienal.

Rio da poeira. Do Bombril. Da faxina. Da loja do China.

Pastel de vento.

Rio do tempo. Tanto tempo.

Rio do apito no Aterro em dia de jogo, da galera da geral, do assovio, menina do anel.

Rio do céu. Gaivota.

Rio da Gávea.

Do Sol.

Rio da sorte.

Ô, morte.





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