quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Crônicas do Dia - Brasil, ida e volta - Cora Rónai

Pensei no resto do Rio, que convive dia sim e outro também com este cenário absurdo


Como se faz para comprar um jatinho? Existe uma resposta clássica para essa pergunta: se você precisa perguntar, não pode pagar. Mas eu estava curiosa. É que estava em São José dos Campos, conversando com gente da Embraer, e cercada de aviões por todos os lados. Como eu já imaginava, essa não é uma compra de impulso, “ah, hoje quero comprar um jatinho!’’. Marco Tulio Pellegrini, CEO da divisão de aviação executiva da empresa, 28 anos de casa, só viu isso acontecer uma vez. Durante uma feira de aviação em Farnborough, na Inglaterra, uma família que estava passeando e testando os aviões terminou o giro do dia no seu estande, encantou-se pelo que viu e lá mesmo fechou negócio. Foi uma festa, e ele voltou para casa pisando em nuvens.

Mesmo assim, a afortunada criatura que compra um jatinho não leva o brinquedo novo para casa imediatamente. Há um tempo entre a assinatura da intenção de compra e a entrega da aeronave. É preciso escolher a configuração interna, a cor dos móveis, o tipo de acabamento. E é preciso fabricar o avião: não há um estoque nos fundos da fábrica à espera dos compradores. Estes, porém, recebem notícias regulares sobre o andamento do projeto, que pode levar até seis meses.

Os jatinhos continuam sendo o maior símbolo de status entre artistas, atletas bem-sucedidos e bilionários de modo geral, mas, no mundo rarefeito em que circulam, são vistos menos como luxo do que como ferramenta de trabalho: dos 5.556 municípios brasileiros, por exemplo, apenas 130 são atendidos pelas companhias aéreas que nós, mortais comuns, utilizamos.

Fui a São José do Rio Preto e a Gavião Peixoto ver como são fabricados. Vi hangares gigantescos, robôs, fábricas impecáveis e até os dois primeiros protótipos do KC390, um imponente cargueiro militar parecido com o Hercules C-130, desenvolvido também para reabastecimento em voo. Pude entrar num deles, que está em teste, e tive o raro privilégio de vê-lo quase pelado por dentro, com o interior ocupado por tanques de água (para simular peso) e uma profusão de computadores.

Nunca tinha ouvido falar em Gavião Peixoto, cidade do interior de São Paulo escolhida pelas condições geográficas e climáticas, e que até a instalação da fábrica, em 2011, vivia da plantação de laranjas. Num dia frio e nublado no Rio e em São Paulo, lá havia sol e pouco vento.

Infelizmente, o céu de brigadeiro de Gavião Peixoto não reflete de todo a realidade da Embraer, que sofreu com a crise, viu o seu mercado se retrair e acaba de demitir quase 1,5 mil dos seus 19 mil empregados por meio de um plano de demissão voluntária. Marco Tulio Pellegrini acha que o pior já passou, e que a empresa vai voltar a crescer com a estabilização da economia. Afinal, entre outras coisas, ela é a terceira maior fabricante de jatos comerciais, e acaba de ser considerada a campeã em atendimento ao cliente da aviação executiva numa pesquisa da publicação especializada AIN.

Sou fã da Embraer. Para mim, cada avião seu que vejo pelo mundo é uma espécie de embaixador de asas dando o recado de um Brasil competente, na ponta da tecnologia. Voei de Embraer na China, em vários países europeus e entre diversas cidades nos Estados Unidos. De cada vez me senti orgulhosa e bem representada.

Visitar uma empresa tão competente e tão bem inserida no mercado global é mais do que embarcar em aviões e viagens; é fugir da realidade que nos cerca 24 horas por dia.

Voltei de São Paulo feliz, acreditando num Brasil eficiente, voando para um futuro bom apesar dos solavancos e desvios de rota. Desci no Santos Dumont, e a ilusão durou exatamente o tempo de chamar o Uber e ser informada pelo motorista de que não poderíamos ir por Copacabana.

— Está uma praça de guerra desde cedo, tiros, helicópteros, gente morta.

No celular, cujas notificações eu ignorara até então, uma quantidade de mensagens aflitas. Um vizinho mandou o vídeo de um tiroteio atrás das nossas casas. Uma amiga não conseguia sair porque a rua estava fechada, outra, que saiu, não conseguia voltar.

Pensei em Gavião Peixoto, cinco mil habitantes, céu azul.

Pensei também no resto do Rio, na imensa cidade que não é Zona Sul, e que convive dia sim e outro também com este cenário absurdo.

Uma vez, há muitos anos, fiquei assombrada quando soube que havia festas em Beirute, que os restaurantes abriam normalmente e que as pessoas saiam para almoçar e jantar entre um bombardeio e outro.

Em casa, depois de ouvir uma descrição detalhada do Zé, nosso porteiro, do que havia sido o dia, tomei banho, cuidei dos gatos, e dei uns telefonemas para avisar à família que estava sã e salva. Mais tarde, fui para o Bar Lagoa.

O restaurante estava cheio.

Havia muita animação, muita comida e bebida. Uma mesa cantou parabéns. Numa outra mesa, ao fundo, reuniram-se amigos e conhecidos meus para mais um aniversário. Na nossa mesa conversamos, rimos e celebramos a felicidade de estarmos juntos e nos querermos bem.

No fim da noite, depois de me despedir dos garçons que já punham as cadeiras sobre as mesas, passei por dois motoristas de táxi, que esperavam clientes do lado de fora.

Eles fumavam tranquilos, e conversavam sobre o tiroteio como se fosse o capítulo mais recente de uma novela.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/brasil-ida-volta-20277875#ixzz4N0vNRbUF

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