sábado, 24 de setembro de 2016

Você sabia disso ? - Educação: Projeto de boas intenções e muitas incongruências



Medida provisória do governo para reforma no ensino médio é polêmica

Antonio José Lopes Bigode*


Projeto de reforma do ensino médio que poderá determinar o futuro dos jovens brasileiros foi definido pelo governo federal por medida provisória. Não se tem notícia de algo assim desde que o governo militar decretou o ensino de Educação Moral e Cívica, em 1969.

O projeto apresentado traz um conjunto de novidades carregadas de boas intenções e um excesso de incongruências. Foi gestado nos gabinetes do MEC sem a participação da sociedade e dos principais atingidos pela reforma, alunos e professores. No discurso de defesa da reforma, é feita referência a países que estão no topo das provas internacionais, como Austrália, Inglaterra, França e Finlândia. Só não é mencionado o fato de que esses países são desenvolvidos, com PIB e IDH alto, e no topo de outra lista, a da Transparência Internacional – artigo de luxo nestes tempos pós-impeachment.

As principais mudanças tratam do aumento da carga horária mínima, da diminuição de disciplinas, da divisão do ensino médio em duas partes, sendo uma fixa e outra flexível, e a possibilidade de contratar professores sem qualificação.

A secretária executiva do MEC Maria Helena Guimarães de Castro aponta o dedo para o número mítico de 13 disciplinas como um dos entraves do ensino médio, mas não faz qualquer ponderação sobre a importância ou não da natureza de disciplinas como filosofia e sociologia. A crítica fica no âmbito numérico, 13 é muito e ponto. Defende o “enxugamento” sem fazer qualquer análise do critério. Sugere que o excesso de matérias desestimula os jovens, mas não diz se é uma opinião pessoal ou baseada em algum estudo com os principais protagonistas.

Há um furo nesse raciocínio de deixar para o jovem montar seu currículo, a partir do segundo ano, de acordo com suas preferências, como em um self-service, pois no primeiro anúncio ficou subentendido que as disciplinas de Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia não seriam obrigatórias, embora qualquer educador experiente saiba que os alunos costumam preferir artes e educação física a matemática ou física.

Especialistas que defendem a flexibilização do currículo expressam suas dúvidas sobre a alternativa proposta e receiam que a suposta flexibilização possa gerar mais enrijecimento, com a supervalorização das matérias mais exigidas nos exames de larga escala. O professor de uma escola de elite da zona oeste de São Paulo, região com uma das maiores rendas per capita do País, relata que muitos de seus alunos dizem que pretendem cursar jornalismo ou arquitetura para fugir da matemática. Vocação não significa “liberou geral”, os técnicos que inventaram a proposta apresentada pelo MEC deveriam ler mais sobre como as escolas vocacionais dos anos 1960 faziam para orientar os alunos nas suas escolhas de vida.

Esperaram o término da Olimpíada Rio 2016 para tirar a obrigatoriedade de Educação Física do currículo, mas, diante da grita geral, horas depois o MEC recuou e disse que houve um erro e aquelas quatro disciplinas seguiam sendo obrigatórias. Não foi um erro, está mais para ato falho. Para Luiz Carlos Freitas, ex-diretor da Faculdade de Educação da Unicamp, “isso revela como as coisas estão sendo tratadas”. No atropelo. A “maior mudança de todos os tempos” sai com texto errado e sem uma avaliação adequada de impacto, confiando em consultas restritas junto a secretários de Educação que não estarão mais em seus cargos em 2018 com as eleições de novos governadores. “Os que permanecem, os professores e gestores de carreira, não foram envolvidos. Se mais pessoas estivessem sendo participativas, não só aquelas que concordam, os ‘erros’ teriam sido apontados anteriormente. Como tudo é feito secretamente e com o objetivo de não deixar vazar antes, para não estragar a festa da divulgação da grande medida inédita na história da educação brasileira nos últimos 20 anos, ocorrem coisas dessa ordem – se a informação procede.”

 É louvável a pretensão de aumentar a carga horária, estimulando que os sistemas estaduais adotem o ensino em tempo integral, uma ideia tão cara a Darcy Ribeiro. Entretanto, sua ideia de educação em tempo integral não era somente uma questão de relógio, e sim de educação para uma formação integral, cultural e intelectual. Mas o ato falho do MEC sugere que Artes e Filosofia são “perfumaria”, como estudantes de Engenharia se referiam às disciplinas de humanas. O provável é que aumentará o tempo das disciplinas que serão cobradas nos exames de larga escala. A proposta de acrescer mais 75% da atual carga não explica como isso será implementado nesses tempos em que o governo federal tenta passar pelo Congresso a desobrigação de investimentos com educação e saúde para os próximos 20 anos. Além disso, a maioria dos municípios é tão carente de médicos quanto de professores de Física ou Química.

Mas aí vem outra pérola do projeto de reforma, que é a possibilidade de os sistemas contratarem professores sem a licenciatura específica desde que tenham “notório saber” atestado pelos próprios sistemas. O conceito foi banalizado, trata-se da “uberização” do ensino, dando carta branca para que as secretarias estaduais contratem professores a título precário, colocando em risco a qualidade do ensino. Um físico que sabe resolver equações do segundo grau não necessariamente domina as técnicas didáticas do ensino desse tópico.

Antevendo o desastre que poderia ser a reforma imposta por medida provisória, foi lançado o Manifesto do Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, criado por dez entidades do campo da educação, como a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação, Ação Educativa, Sociedade Brasileira de Física e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, entre outras. O documento aponta para várias violações aos direitos e às leis vigentes, denunciam o caráter tecnicista por trás da reforma e o perigo de aumentar ainda mais o fosso entre os sistemas privados, que atendem ricos, e a escola pública, onde estuda a maioria dos alunos pobres. Luiz Carlos Freitas reforça:

“Com a desculpa de ‘adequar-se ao projeto de vida’ dos estudantes, a nova proposta reforça a segregação e a dualidade no ensino brasileiro, retirando os estudantes mais pobres da escola pela vertente da profissionalização precoce – afinal, são os pobres que precisam entrar logo no mercado para ganhar a vida – e mantendo nele os mais ricos, que têm tempo e dinheiro para prosseguir em direção à universidade. A educação que ela pensa dar para a juventude é Apenas educação de tempo integral e não uma educação de formação integral”. 

*​Jornalista e doutor em Didática da Matemática​

Link curto: http://brasileiros.com.br/TLxMF

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