terça-feira, 6 de setembro de 2016

Crônicas do Dia - Um pouco de lucidez - Gabriel Chalita


Numa destemperança de adultos, uma criança trouxe luz

O DIA
Uma criança usou toda a sua autoridade para dizer “um pouco de lucidez” e prosseguiu com a serenidade tão cara aos sábios, “um pouco de lucidez, por favor!”.


Era uma destemperança de adultos. Não ouvi o início da conversa, mas ouvi o tom belicoso com que se tratavam. Um interrompia o outro. Nenhum dos dois concluía o próprio pensamento. Cortavam-se mutuamente. Alguns cortes demoram a cicatrizar; por isso, é melhor ser cuidadoso. Não estavam sendo cuidadosos aqueles dois. Aqueles dois adultos. E a criança deixou a conversa prosseguir por algum momento. Talvez tivesse a ilusão de que se entenderiam. Talvez tivesse visto cenas boas que lhe comprovassem quanto os dois se amavam. Não fosse isso, não estariam juntos. Mas o amor nem sempre traz razão às emoções teimosas. E os que se amam, por vezes, esquecem-se da beleza do amor. E se perdem em desnecessidades. Permitem que surjam intrusos.

A criança queria apenas lucidez. Não sei onde lhe ensinaram essa palavra. ‘Lucidez’ tem uma possível origem na palavra latina ‘lux’. A luz dissipa as sombras que escondem parte do que precisaria ser conhecido para se chegar a conclusões mais acertadas. Os dois estavam sem luz. Não apenas os dois. Adultos precisam ouvir mais as crianças. Os anos vão nos acumulando imprecisões, vícios, precipitações, teimosias. Perdemos a espontaneidade. Cercamo-nos de defesas erradas e, por isso, atacamos. É assim nas relações de paixão e de amizade. É assim na política. Ou nas crenças religiosas. Ou nos comportamentos. Vestimo-nos de verdades absolutas e impedimos a luz de nos mostrar outros caminhos possíveis. E há outros, certamente, além daqueles que estamos vendo. A falta de luz, lucidez, faz com que não consigamos ver além da nossa teimosia.

Os teimosos estão com as pedras nas mãos. Nas ruas e nas mídias sociais. Estão cheios de razão sem razão. Decididos a cortar quem pensa diferente. Mas como exigir que todos pensem da mesma maneira? Nem aqueles dois, os pais da criança, conseguiam pensar da mesma maneira. Pelo menos não naquele momento em que o filho tentou pôr fim aos exageros. Não gosto de exageros. Nunca nos caem bem. Os exageros são as locomotivas para os fundamentalistas, para os radicais, para os que agem longe da luz.
Resolvi cumprimentar os pais pelos ditos do filho. Disse que devia ser fruto de uma educação cuidadosa. Sorriram-me. Agradeceram e prosseguiram. Lúcidos.

Gabriel Chalita é professor e escritor

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