segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Artigo de Opinião - Negros, sim; malandragem, não



Frei David Santos, Diretor Executivo da Educafro, e

William Douglas, juiz federal e professor universitário






Conta-se que um homem, interessado na mulher sentada ao seu lado em um avião, puxou conversa e, durante a mesma, soube que ela era antropóloga, estudando o desempenho sexual dos grupos sociais e etnias. Segundo ela, os melhores desempenhos seriam o dos índios e o dos judeus. Lá pelas tantas, e como ainda não tinham se apresentado formalmente, ela indagou o nome do homem, que prontamente respondeu “Caramuru Rosenthal, muito prazer”.



O problema é que a história é ótima como piada, mas de péssimo gosto na realidade. Infelizmente, pessoas que não fazem jus às cotas estão se declarando não como “Caramuru Rosenthal”’, mas como negros.



Ficou conhecido o caso do Sr. Mathias de Souza Lima Abramovic, que foi alvo de denúncias por disputar uma vaga para diplomata pelo sistema, em 2013.

Tudo o que dispomos de informações sobre o referido cidadão é que ele não é afrodescendente nem faz jus ao benefício legal. O problema é que esse cidadão voltou a se autodeclarar negro no processo seletivo para o mesmo cargo, conforme noticiou a imprensa (<http://concursos.correioweb. com.br/app/ noticias/ 2015/07/23/noticiasinterna,35331/candidato-que-gerou-polemica-ao-concorrer-co mo- cotista-em-2013-volta.shtml# .VbEL72e5fcv>).

As cotas estão estabelecidas por lei e foram reconhecidas como constitucionais pelo STF. Assim, quer o leitor concorde ou não com elas, é uma ação afirmativa em vigor. Daí, favoráveis e contrários à medida devem se unir para que a mesma seja executada de forma adequada.

Aceitar que pessoas espertalhonas se valham do benefício legal sem que preencham seus requisitos é moralmente inaceitável. Não podemos deixar espaço para o “jeitinho brasileiro”’  em sua pior acepção.



Você pode ser contra ou a favor das cotas, mas tenho certeza de que não concorda que – em havendo cotas – elas sejam fraudadas por pessoas sem ética. Causa espécie que o Instituto Rio Branco não resolva isso de forma exemplar. É esse o tipo de diplomata que o Brasil quer ou precisa? Pessoas que já fazem coisas contrárias à ética para entrar no Itamaraty? Gente assim vai fazer o que representando nosso país no exterior?!

Não é preciso nenhuma norma nova para impedir a malandragem. Existem dois caminhos imediatos.

O primeiro é que o Itamaraty e o Ministério do Planejamento façam uma portaria regulamentando a lei e que, a partir da ADPF 186, na qual o STF defendeu a constituição da comissão de averiguação da falsidade étnica, evite a malandragem.

O segundo caminho é utilizar a Lei de Improbidade – Lei nº 8.429/1992, que diz em seu artigo 1º que os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não,” deverão ser punidos. O art. 11 da mesma lei diz:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; […]

V – frustrar a licitude de concurso público;

A nosso ver, são claros a violação dos deveres de honestidade e de lealdade (caput), a busca de fim diverso do previsto pela Lei de Cotas e, ainda, o dano à lisura do concurso. O abuso na autodeclaração é claramente um ato de improbidade e, por isso, já permite a exclusão dos “espertos”.

As penas são previstas no art. 12, III: III – na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

Não é preciso mais do que o desejo de evitar a malandragem para se excluir os abusadores dos certames. Não se pode ter um culto religioso à figura da autodeclaração. Ela funcionou no passado pois havia o preconceito em alto grau, mas após o sucesso na aprovação das políticas de cotas, a verdade é que não é mais uma solução satisfatória. Afinal, se fica fácil se autodeclarar, os estelionatários, malandros, aproveitadores e todos mais que não interessa ter no serviço público e nas universidades irão se locupletar.



Eis nosso entendimento: já temos a possibilidade de regulamentar a “comissão de averiguação de falsidade étnica” e temos a Lei da Improbidade. No entanto, se alguém entender que é preciso mais especificidade, que seja editada lei ou medida provisória tratando do tema.



Assim, a terceira solução é a edição norma  que evite o êxito dos oportunistas e fraudadores das cotas. É preciso um sistema de questionamento. Claro que alguém dirá que isso seria um “tribunal racial”, nome forte e polêmico, mas o STF já sinalizou que uma comissão de averiguação é saudável e oportuna. Muito pior do que ter uma comissão de averiguação será ver nórdicos, japoneses e outros não contemplados pelas cotas valerem-se do artifício da autodeclaração. Pior do que colocar alguém que não faz jus à cota é abrir espaço para que os malandros ingressem no serviço público.



Quem frauda o sistema de cotas mostra uma índole  que é própria dos delinquentes morais, sendo pessoas com  tendência à  cultura da “’esperteza”. São candidatos prováveis a serem os futuros corruptos e abusadores de autoridade.



Daí, a solução da autodeclaração deve ser a primeira, mas não a única. Como disse Belchior, “No presente a mente, o corpo é diferente / E o passado é uma roupa que não nos serve mais”. O aperfeiçoamento do Estado e dos concursos é um movimento contínuo, progressivo, e está na hora de darmos mais um passo.



Entendemos que é recomendável que a norma preveja expressamente que qualquer instituição, banca examinadora, entidade que promove o concurso ou, ainda, qualquer cidadão ou entidade de defesa da moralidade ou racial tem legitimidade para questionar a autodeclaração. Esse incidente será cabível até a data da posse. Nossa sugestão é que em caso de denúncia de abuso, o candidato que se autodeclarou tenha o direito de se defender. Então, em decisão colegiada, a autodeclaração será validada  ou não. Essa é a melhor forma de evitarmos que uma medida com cunho social e de inclusão seja usada como veículo por quem não tem os limites morais e a ética que se espera de todos e da qual não se pode abrir mão no serviço público.



Entendemos que ainda caberia mais: se a comissão entender que houve abuso, a pessoa poderá ser enquadrada na Lei de Improbidade ou simplesmente impedida de fazer concursos pelo prazo de três anos. Assim, nos casos em que a pessoa tem dúvidas e se autodeclara, não haveria reprimenda, apenas a desclassificação. No entanto, quando aquele nórdico perfeito aparecer se autodeclarando, deverá não só ser desclassificado, como também receber justa punição pela malandragem.

Esperamos que o Congresso Nacional, ou a Presidência da República, por medida provisória, dada a urgência, regulamente o assunto.



Assim, casos como o do Sr. Abramovich e assemelhados não mancharão de branco a negritude das cotas.

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