quinta-feira, 23 de junho de 2016

Você sabia disso ? - Tolerância - após atentado nos EUA, artistas discutem respeito à diferença

RIO - Clara surge longilínea, depilada, de corset de renda, salto alto e longos cabelos loiros, invadindo a cena. Num flashback, assiste a um show e flerta com um homem, que é zoado pelos amigos: Clara é travesti. Com raiva, o homem a seduz e, depois, a espanca. Corta. A cantora Barbara é vista aos beijos com o agressor. Ela o leva para um quarto e o algema. Barbara sai de cena. Dá a vez à travesti, que ameaça o espancador. Todos esperam que ela se vingue, mas... (veja o vídeo, abaixo, lançado neste domingo no site do GLOBO). A história é o pano de fundo do clipe “Your armies” (“Seus exércitos”), de Barbara Ohana, dirigido por Allexia Galvão e Daniel Rezende, indicado ao Oscar pela montagem de “Cidade de Deus”. E Clara... Bem, Clara é Cauã Reymond, quase irreconhecível. Uma semana após o atentado homofóbico que matou 49 pessoas numa boate gay de Orlando, o vídeo, gravado em abril, é um manifesto pela tolerância.


— Apesar de ser um tema pesado, tentei transmitir delicadeza na minha interpretação, já que esse é um assunto importante e precisa ser discutido — explica Cauã, que passou dois meses sem malhar para perder massa muscular e andou muito de salto pela casa para se acostumar com o papel. — Infelizmente, esse clipe está saindo num momento muito oportuno, e isso só reforça a mensagem que queríamos passar. As pessoas precisam aprender a respeitar as diferenças, independentemente de orientação sexual, religiosa, política.

— Esse atentado é um retrato terrível do que acontece no mundo — diz Barbara. — A violência e o desrespeito à diversidade são infelizes partes do nosso cotidiano. Não acho importante me posicionar só como artista, mas também como ser humano. A tentativa é evoluir e provocar a evolução.

A palavra provocar salta aos olhos quando se vê o novo comercial de maquiagem da Shiseido, que disputa o festival de publicidade de Cannes. No vídeo, que viralizou e virou assunto nos últimos dias, meninas japonesas são mostradas de outro modo. E o espectador logo vê como aparências enganam.

— O preconceito vem muitas vezes da ignorância — diz o artista plástico paulistano Fernando Codeço.

Radicado no Rio, há uma década ele cria obras inspiradas em travestis da Lapa e da Glória, onde morou. “Olympias” surgiu justamente do que ele percebeu que sentia em relação a elas.


— Vi que de algum modo eu mesmo participava daquele preconceito. Aquilo me incomodava e ao mesmo tempo instigava minha curiosidade — explica o artista, que passou a retratá-las e exibiu o resultado recentemente na mostra “Vênus nos espelhos”. — Meu trabalho não levanta bandeira, não é panfletário. Mas acredito que possa somar nessa batalha cotidiana contra a homofobia. Tendemos a não entender o que não conhecemos.

Diretor do premiado filme “Tatuagem” (2013), que trata da relação amorosa entre um soldado reprimido e o libertário líder de um cabaré, na ditadura, o pernambucano Hilton Lacerda lamenta não só a tragédia de Orlando, mas a enxurrada de comentários preconceituosos que se seguiu.

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— A gente deveria ter conquistado um grau de civilidade, mas o que vejo é um retrocesso muito grande. O século XX foi de ultrapassar processos, a gente se acostumou mal, e agora parece que nós estamos andando para trás. Daqui a pouco seremos acusados de provocar a ira dos que não nos aceitam — diz ele. — No momento em que discutimos essas questões de visibilidade de gênero, cumpre à arte desmistificar. Não falo de colocar o assunto num lugar inatingível onde tudo parece resolvido, mas onde a problemática existe. Não é mera afirmação.

Para o poeta paulista Ricardo Domeneck, que vive em Berlim e publicou um longo desabafo e uma poesia ao saber de Orlando, as artes também têm o poder de lembrar o lugar que os LGBTs ocuparam em diferentes eras.

— As artes podem nos mostrar a relação que outras culturas e épocas tiveram com a ideia de um gênero mais fluido — diz ele, citando, entre outras, a poesia homoerótica árabe de autores como Abu Nuwas e Ibn Sahl, que viveram no século VIII. — Roma, antes de Constantino, era tão tolerante quanto a Atenas clássica. Os homofóbicos tentam fazer crer que sua ordem social tem sido a “natural” por séculos. Isso é uma grande mentira.

O pernambucano Marlon Parente — publicitário e diretor do documentário “Bichas”, visto quase 500 mil vezes no YouTube desde fevereiro — busca tirar o estigma da palavra que dá título a seu filme, que retrata jovens gays narrando orgulhosamente suas trajetórias.

— Imergir uma pessoa numa realidade diferente da dela e fazê-la refletir é algo que só a arte consegue. Ainda mais falando de vivências LGBT — diz.

Para o rapper Rico Dalasam, porém, a arte ainda precisa fazer muito pelas causas gays. Sensação do queer rap, vertente gay num gênero muitas vezes acusado de ser homofóbico, Rico pode ser considerado o retrato de uma minoria.

— Por tempos me achei errado por amar assim, me calei para não gritar que amava, e o rap me deu justamente as palavras e a habilidade de usá-las. Trabalhar na música já é um superdesafio. Agora, estabelecer uma identificação com um mundo que não sabe lidar comigo é uma construção a cada episódio — conta o morador de Taboão da Serra, na periferia de São Paulo. — Mesmo assim, não foi a arte que me ajudou a me empoderar, e sim a rejeição. Foi não me ver representado por ela que me deixou cheio de ousadia para tentar mudar esse panorama.


Antes mesmo da tragédia em Orlando, o recém-formado coletivo Salada das Frutas já bradava: “É hora de resistência e luta. Cantar liberdades, corpos e amores. Denunciar preconceitos, conquistar direitos e quebrar barreiras. É o momento de desconstruir conceitos”, diziam, em manifesto, o cantore Liniker, a cantora Tássia Reis e o trio As Bahias e a Cozinha Mineira, encabeçado pelas trans Assussena Assussena e Raquel Virgínia.

— Nossa mensagem é que queremos, podemos e seremos felizes e livres. A sociedade vai nos ver brilhar sempre, mesmo que muitos nos queiram na lama — afirma Raquel.



Como canta MC Queer no vídeo “Fiscal”, que se espalhou pelas redes há menos de um mês: “O fervo também é luta”.


por Liv Brandão




Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/combate-homofobia-inspira-musicas-filmes-textos-obras-de-arte-19536592#ixzz4CPWFBqTJ





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