domingo, 19 de junho de 2016

Crônica - 19 de maio de 1888 - um olhar

Bons Dias! - 19 de Maio de 1888


O tema da crônica de Machado de Assis, publicada na Gazeta de Notícias, em 19 de maio de 1888, representa o clima dominante no Brasil do período Pré- Abolição da Escravatura.
Conforme Chalhoub (2003, p. 58) que analisou atentamente os detalhes  históricos da escritura de Machado de Assis e nos possibilita uma compreensão da qualidade e do estilo das relações sociais brasileiras, na segunda metade do século XIX, relações essas nas quais predominavam o favor e o arbítrio e que se pode observar muito bem no diálogo de Pancrácio e o seu senhor:

־ Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já
conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que [...]
־ Oh! meu senhô! fico.
־ [...] Um ordenado pequeno, mas que há de crescer.
־ Tu vales muito mais que uma galinha.
־ Eu vaio um galo, sim, senhô.
־ Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Embora alforriado, Pancrácio permanece dependente economicamente de seu senhor até porque poderá andar livremente, embora sua liberdade esteja atrelada aos limites da sua algibeira e de seu ordenado de seis mil reis.

A continuidade do discurso do narrador acaba por revelar as verdadeiras intenções de sua atitude que, na verdade, não parece tão louvável assim.
Aproximando a categoria “proposição de mundo” de Ricoeur (1990, p. 44) ao texto de Machado, no qual o teórico se desvenda, se descobre e se revela diante do mesmo.
Porém, em 19 de maio de 1888, temos uma pseudo-proposta de nova atitude, pois, na verdade, tudo continuará igual. O narrador em seu discurso revela que continuará a desferir petelecos, puxões de orelha e pontapés em Pancrácio, acrescidos dos insultos de besta e filho do diabo.
Podemos estabelecer três momentos distintos para averiguar a perspectiva do narrador que inicia o texto como precursor da Abolição, passando a defensor da alforria e, por último, revela sua verdadeira intenção de lançar-se politicamente como deputado. Assim o bordão da campanha seria mais ou menos nestes termos: “nobre deputado antecipou-se à lei, libertou um escravo que aprendeu a ler e escrever, e atualmente leciona Filosofia no Rio das Cobras”. Outro procedimento que despertou nossa atenção foi a crítica sutil com o uso de três adjetivos para desqualificar os procedimentos dos poderes públicos.
A habilidade de brincar com os vocábulos explicitada na expressão que encerra o texto valendo-se da oposição terra/céu redimensiona a força e a importância da atitude “precursora” do pretenso deputado.
O banquete organizado pelo senhor na verdade prepara terreno para que os convivas sejam testemunhas oculares da “previsão do profeta ‘après coup’”.
Há o empenho do narrador para, através de seu discurso, imprimir no leitor a crença de que sua ação antecipada favorece Pancrácio, individualmente, mas que por extensão foi válida para os escravos em geral. Se bem que o sistema foi perverso mesmo quando procurou auxiliar ou defender os cativos, segundo Chalhoub (2003, p. 239-240): “De qualquer modo, no Império do Brasil, no início da década de 1880, as estatísticas oficiais diziam que continuava a ser mais provável
um escravo morrer no cativeiro do que conseguir a liberdade”.
O tom galhofeiro e leve que Machado utilizou ao longo do texto nos dá a sensação de que o próprio comportamento de desprezo pelo escravo e, ao mesmo tempo, reforço da ideologia paternalista dos senhores resultam na relação dependente senhor/alforrriado (ex-escravo). Isto é, embora em tese Pancrácio seja um homem livre, ele ainda tem na sua retaguarda um senhor que poderia monitorar seus passos, suas atitudes e, mais ainda, julgá-lo na antiga perspectiva de senhor
de escravo.
Na comparação que o senhor faz entre Pancrácio e um animal, no caso de uma galinha, transparece o traço estereotipado da animalidade outrora dispensado aos escravos em geral.
A influência da função pública de Machado de Assis no Ministério da Agricultura (1870-1880) lhe conferiu um status privilegiado no conhecimento legal e na aplicação da Lei do Ventre Livre a partir de 28 de setembro de 1871.
Se empreendermos uma síntese por parágrafos desta crônica e destacarmos os fatos em sucessão temporal, temos: no primeiro parágrafo, o narrador apresentando-se como da “família de profetas ‘après coup’” e também comentando sobre o molecote (alforriado); no parágrafo seguinte, o narrador relata o jantar no qual reuniu cinco amigos que chamaram o evento de banquete, e as notícias mencionaram a presença de 33 pessoas; no terceiro parágrafo, então, acontece o “coup du milieu”, ou seja, o brinde com taças de champanha, com uma referência às idéias cristãs a respeito da liberdade humana; segue-se o quarto parágrafo e então Pancrácio, o ex-escravo, entendia que a nação deveria imitar o exemplo de seu senhor, pois a liberdade é um dom de Deus; no quinto parágrafo, temos o diálogo entre o senhor e Pancrácio e, no parágrafo posterior, a aquiescência do alforriado aos petelecos e destratos do senhor. E prossegue o sétimo parágrafo. Pancrácio, alegre e humilde, convivendo com os insultos e agressões físicas, para, no último parágrafo, o narrador revelar seu plano do envio de uma circular para os seus futuros eleitores, pois ele pretende eleger-se deputado. Logo, toda a encenação com Pancrácio foi uma farsa para sensibilizar os prováveis eleitores. A máxima que encerra a crônica foi uma crítica sutil aos poderes públicos e à política.
Resende (1992, p. 425-426) assinala o aspecto ficcional do criado, Pancrácio, e seus perfis entre revoltado e ofendido, assemelhando-o aos bobos de Shakespeare. E o cotidiano de Pancrácio se mantém praticamente inalterado.
As reflexões de Afrânio Coutinho (1959, p. 24-25) estão em consonância com o comportamento do pretenso deputado que se relaciona com as concepções machadianas:

É preocupação constante dele insinuar ou apontar que a vida é má e madrasta, indiferente ao homem e portanto não merece o nosso esforço, as nossas lutas, causas de distúrbios e sofrimentos [...] Nas manifestações dessa vida ele só enxerga zombaria, ódio, egoísmo, lutas, ridículo, falsidade, cálculo, que formam a trama da comédia humana, e o recurso é não a levarmos a sério, não nos deixarmos “empulhar.
A análise sócio-histórica de Thompson nos auxilia a averiguar a condição social específica em que se dá a escravidão no Brasil, permeada por uma estrutura social que possibilitava relações assimétricas.
O argumento de Bosi (2000, p. 154) é pertinente: “O olhar com que Machado penetra aquele universo de assimetrias tende a cruzar o círculo apertado dos condicionamentos locais na direção de um horizonte ao mesmo tempo individual e universal”.
Observamos uma sociedade cindida em classes sociais, de um lado os senhores e suas famílias na casa grande, e de outro os escravos, oprimidos, na
senzala, os primeiros afirmando seu poder e os últimos aspirando à liberdade.
Kênia Pereira (2001, p. 29) apresenta-nos inferências sobre a situação do escravo na obra de Machado:
Portanto, o escravo era tratado como objeto inerente a um sistema social de propriedade e estava vinculado a diversas atividades de transação econômica, sendo “negociado”, comprado, vendido, alugado, fazendo parte ainda de espólios e testamentos.

ELOISA SILVA MOURA

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