quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Polarização

POLARIZAÇÃO

A pior crise política é a que nos condena ao governo pelo crime


Por que será que, depois de todas as lutas por direitos, os cidadãos hoje apoiam leis que os restringem? Na base desse fenômeno está a implosão da ideia de que a lei se aplica a todos. Aqueles que defendem a redução da idade penal não desejam tratamento penal para seus filhos


por Marta Rodriguez de Assis Machado



Somos governados pelo crime. E com isso não quero dizer que o “crime organizado tomou conta do país” nem que o “Brasil é o país da corrupção”, como muitas vezes se escuta. Quero dizer que enquadrar como crime e distribuir (seletivamente) punições é hoje uma das principais ferramentas de governo em nosso país. A estratégia de regulação da vida por meio do crime e da pena é quase onipresente. É assim que são regulados (ou se pretende regular) fenômenos dos mais diversos: do tráfico de drogas à sonegação tributária; do furto de um pacote de bolachas no mercado a grandes esquemas de corrupção; da fraude financeira à violência doméstica; da poluição à homofobia. Essa lista poderia seguir indefinidamente, trazendo fenômenos totalmente distintos, com níveis de complexidade dos mais variados, todos tratados da mesma forma: definição de um crime sob ameaça de pena de prisão. Se estivéssemos falando de doença, seria o mesmo que afirmar que há um único remédio para toda a sorte de problemas. E, pior, um remédio cuja eficiência não é corroborada por nenhuma evidência, mas tem muitos efeitos colaterais conhecidos. O ponto é que, mesmo diante da constatação de que a prisão não está funcionando, a solução apresentada invariavelmente é mais prisão. Parece nonsense,mas é assim que temos caminhado na construção de nossas políticas públicas.

Pelo menos desde os anos 1990, a cada caso de repercussão que assalta a opinião pública propõe-se a inclusão de um novo tipo penal na lei de crimes hediondos. A cada problema social grave segue-se a proposta de criar um crime novo. Se já existe o crime, sugere-se aumentar a pena e endurecer o tratamento. Foi assim em todas as alterações na lei dos crimes hediondos. É assim na retumbante maioria dos projetos legislativos em matéria penal – criam-se crimes e aumenta-se o tempo de encarceramento. Quase toda nova lei tem um tipo penal ao final, para referendar que sua obediência é devida. Se algum problema social persiste, acusa-se a lei penal de ser muito branda. É como se toda a ordem social, ao fim e ao cabo, dependesse da repressão penal para funcionar.

Essa categoria ficou tão central em nossa vida comum que uma das formas de legitimar a atuação de uma instituição é medir se ela está “combatendo o crime”. É por meio da polícia e da criminalização na repressão aos protestos que se responde à mobilização social. É por meio de uma investigação criminal que se cria uma crise política. Discutindo processos de endurecimento penal é que se geram polarizações.

Quando olhamos para um dos temas urgentes de nossa agenda pública – a corrupção –, os holofotes estão direcionados para a atuação da polícia federal, o processo criminal, o juiz linha-dura, as prisões e as ameaças de prisão. Não se avança em soluções mais palpáveis, menos histriônicas e de caráter sistêmico – mais transparência, aperfeiçoamento dos meios de controle do uso do dinheiro público e dos contratos de licitação, rediscussão das regras de financiamento de campanhas eleitorais, enfim, nada para além da medida penal simbólica. E todos ficamos com a impressão de que alguma medida muito drástica foi tomada, de que se trata de um “marco civilizatório”.

A politização do crime tem várias facetas: articula-se com o reforço das hierarquias sociais; com as dinâmicas de desigualdade de classe, raça e gênero; com o populismo da classe política e sua inércia na não execução de reformas efetivas; com o mercado lucrativo da segurança; com a manipulação fácil de uma população acuada. Mas a longo prazo seus efeitos mais perversos são também a destruição da confiança no outro e a asfixia do debate democrático.

Jonathan Simon, professor de Berkeley, mostra como o governo pelo crime se tornou a solução para retomar a governabilidade dos Estados Unidos durante a crise do pacto político proposto desde o New Deal. Enquadrar os problemas sociais como criminais deu à classe política a possibilidade de transmitir uma imagem de que exercia o poder em meio a um momento de incapacidade de controlar a crise econômica e social no final dos anos 1960 e 1970. E um poder que poderia ser exercido e explorado com vigor e sem muita exigência de resultados.

De acordo com Simon, a solução política do Estado penal veio substituir uma política de inspiração welfarista, em que a solidariedade era um valor que permitia a distribuição de riscos e responsabilidades entre indivíduos e sociedade, e no qual, portanto, mecanismos de reabilitação, desprisionalização e justiça juvenil não encarceradora tinham preeminência. Na nova ordem do Estado penal, impera a lógica do Estado mínimo, da proteção mínima contra riscos econômicos e sociais, da responsabilização individual. O direito penal é aquele que, diante de um problema social complexo, que resulta da interação de muitos fatores – muitas vezes históricos ou sistêmicos –, produz sempre uma resposta baseada na responsabilidade individual. Abstraindo-se de todo o resto, o conflito é percebido como resultado de um ato individual e o sujeito que o cometeu paga com o próprio corpo.

E sua promessa – evidentemente impossível de ser cumprida, mas continuamente repetida e inquestionada – é a de que essa medida individual (corporal) resolverá sozinha todos os problemas que se dispõe a enfrentar. A democracia norte-americana, segundo Simon, foi deformada pela estratégia do war on crime, que desde os anos 1960 adotou a penal como a primeira e prioritária resposta aos problemas de governança daquele país. Foi essa a estratégia que colocou os Estados Unidos na primeira posição no ranking do encarceramento, com níveis de racialização tão elevados que hoje se diz que nunca houve um contingente tão alto de negros em sistema de restrição de liberdade desde a escravidão (o que, diga-se de passagem, também se aplica ao Brasil). Se quisermos pensar na eficácia dessa política, basta tomarmos o exemplo da guerra às drogas, lançada por Nixon em 1971 e reforçada a cada governo. Os efeitos da política proibicionista – tanto no âmbito interno como nos países que a ela aderiram – já foram escancarados pelo debate em torno da legalização das drogas: fracasso na diminuição do consumo, crescimento da violência, aumento na circulação de armas ilegais, fortalecimento do crime organizado, encarceramento em massa. Todas essas questões estão colocadas hoje na agenda brasileira, já que até agora, sem titubear, seguimos à risca a cartilha proibicionista: a taxa de encarceramento por tráfico no Brasil cresceu 344,8% desde 2005; não obstante, tramita no Senado um projeto de lei, de autoria do deputado Osmar Terra, que propõe um endurecimento ainda maior da política de drogas.

O custo social da prisão é gigantesco. Ostentamos uma triste quarta colocação no ranking dos países que mais encarceram no mundo. Chegamos a 607.731 presos, em razão de uma taxa de encarceramento (número de encarceramento por 100 mil habitantes) que cresceu 317,9% de 1992 a 2013, quase oito vezes mais que a dos Estados Unidos, que cresceu 41% nesse mesmo período.1 Nossas cadeias estão superlotadas de cidadãos em sua maioria jovens (74% têm menos de 35 anos), negros (67%) e sem ensino fundamental completo (70%). Se a categoria simbólica “crime” regula muitos ambientes, inclusive o empresarial, o perfil da população “selecionada” por nosso sistema prisional é bem específico. O tratamento que lhes é dado é sabidamente desumano e o sistema é deficitário em pelo menos 231 mil vagas. A solução apresentada a esse panorama invariavelmente envolve a construção de novas unidades prisionais (possivelmente privatizadas, para alegria dos investidores, que têm aí um mercado novo, com demanda constante garantida). Mas qualquer solução que não passe por políticas de desencarceramento perpetua o círculo vicioso da prisão, que, para além da segregação e da legitimação da violência de Estado, alimenta o crime organizado. Vale lembrar que o PCC surgiu exatamente desse cenário de superencarceramento e de violação generalizada de direitos da população presa. E que, pelo menos no que diz respeito ao estado de São Paulo, com a maior população carcerária do país, a cada jovem que mandamos para a prisão, é mais um que recrutamos para a organização criminosa.

Do lado de fora dos muros da prisão, o resto da sociedade vive também aprisionada em muros e controlada pelo medo. O medo, aliás, cria um lucrativo mercado de carros blindados, segurança privada, alarmes, portões eletrônicos, câmeras de vigilância. Um exército de gente amedrontada pronta tanto para consumir tais itens “essenciais” à sobrevivência em grandes cidades como para acreditar em soluções de efeito placebo, como a prisão. Num cenário de medo e irracionalidade, o populismo punitivo nada de braçada. Não importam as evidências há muito demonstradas de sua ineficiência, a possibilidade da exclusão dos “perigosos” por um bom número de anos parece sempre proporcionar um alívio emocional. Em matéria de segurança pública, transitamos entre duas formas de aprisionamento: de um lado, o aprisionamento real dos grupos que são alvo da repressão do sistema de justiça criminal e, do outro, a prisão mental do consenso punitivista e do estado penal, que também aprisiona os ditos “cidadãos de bens” em redomas de segurança.

O capital simbólico e emocional da solução penal parece blindar a opinião pública diante do princípio da racionalização e da crítica. Claro que aqui também entra em cena um ator que muito contribui (e ganha) com o sensacionalismo do direito penal: a mídia. Mas, de qualquer forma, o ativismo da classe política no apelo punitivista é fundamental. E encontra solo fértil em uma população já acuada e controlada, que tende a se convencer mais facilmente de soluções simplistas e maniqueístas, vendidas como garantidoras da tolerância zero ao riscode crime – algo, evidentemente, impossível.

Uma pesquisa feita nos Estados Unidos mostra que o apoio da população às políticas penais é conduzido pelo discurso dos políticos, e não o contrário.2 Em nosso caso, se é verdade que há um maciço apoio da opinião pública a políticas penais, é ainda uma questão em aberto em que medida as formas de manipulação populista e mediática estão na base disso. Assistimos recentemente ao debate sobre a redução da maioridade penal e às polarizações que ali se produziram. O núcleo da discussão foi assustadoramente limitado a duas opções reducionistas: aceitar a redução ou aceitar a impunidade. Cobrar, por exemplo, a aplicação real do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de medidas socioeducativas de responsabilização que não passassem pelo aumento do tempo de encarceramento foram opções excluídas. No debate polarizado entre o bem e o mal, “cidadãos” versus “bandidos”, muitas peças estiveram fora do tabuleiro, à custa do aniquilamento do bom senso e da qualificação da reflexão pública.

O consenso punitivo nos deixa órfãos de questionamentos mais profundos sobre seus efeitos na sociedade, especialmente aqueles que relacionam a violência do próprio instrumento penal com nosso contexto de desigualdade social.

O punitivismo está há muito tempo na base de nossa concepção de justiça. Se não prender, não há justiça. Pena alternativa que não faça o agressor sofrer é impunidade. Soluções irracionais na linha do “olho por olho, dente por dente” ainda contam com impressionante receptividade no Brasil. Vejam-se não só os discursos raivosos e vingativos que a notícia de um crime frequentemente suscita, como também o elevado número de linchamentos que acontecem país afora. Quando se trata de eliminar o outro, não fazemos muita questão de pensar em desenvolvimento, modernização, estado de direito. Discursos arcaicos e irracionais circulam livremente em nossa esfera pública sem causar muito espanto.

Como chegamos até aqui? Como em nosso processo de redemocratização, após um momento inicial marcado por uma Constituição nova, promotora de direitos civis e sociais, a disputa pelo reconhecimento dos direitos humanos, embora permeada de conquistas para diversos grupos, acabou por assistir a uma derrota simbólica tão grave quanto o fato de que a própria expressão direitos humanos tornou-se negativa, sendo associada a “direitos de bandidos”?

Nossa democratização coincidiu com o aumento da criminalidade urbana e a instalação de um modelo de “cidade de muros”, para fazer referência à descrição tão precisa que Teresa Caldeira fez da implosão de nossa vida pública pelos esquemas de segurança. A manutenção das desigualdades sociais na base da segregação, a construção de condomínios privados, portões duplos, câmeras de segurança, tudo isso associado a altas taxas de violência e letalidade policial, compõem um modelo que tem por base a clivagem cidadãos versusbandidos. E a atribuição da etiqueta de bandido teve como matriz constante o racismo, também nosso velho conhecido.

Se olharmos para o lado, veremos que não estamos na contramão das medidas tomadas, por exemplo, contra “terroristas” ou imigrantes ilegais em outros países. Não somos os únicos a resolver nossos problemas com a eliminação de direitos de um certo grupo ao qual atribuímos responsabilidade por nossos medos.

Diante desse diagnóstico, o filósofo frankfurtiano Klaus Günther articulou uma das questões contemporâneas mais intrigantes: por que será que, depois de todas as lutas que as sociedades ocidentais travaram para conquistar direitos e liberdades diante do Estado, os cidadãos hoje demandam e apoiam leis que restringem direitos? Para Günther, na base desse fenômeno está a implosão da ideia de que a lei se aplica a todos indistintamente. O apoio à diminuição de direitos apenas se dá porque se assume de saída que ela é direcionada a um certo grupo; ao outro, ao “inimigo”. O apoio à redução de direitos e a legislações duras pressupõe, portanto, a crença em sua aplicação seletiva.

Ao menos no caso brasileiro, o funcionamento do Judiciário e das instituições do sistema de justiça nos dão motivos para não duvidarmos dessa premissa. Quando 87% dos cidadãos defendem a redução da idade penal, certamente não estão convencidos de que suas filhas e filhos estão prontos para o tratamento penal no início da adolescência; os destinatários dessa norma serão as filhas e filhos pobres e pretos de nossas periferias. Não é coincidência que sejam esses já os alvos conhecidos dos atos abusivos e violentos da polícia, da insensibilidade dos juízes, dos maus-tratos e do mau funcionamento das Fundações Casa. Trata-se apenas de aumentar a carga contra eles. Poder mantê-los mais tempo encarcerados. Traçar com mais força as linhas da segregação.

O nosso difícil, truncado e – talvez – descontinuado processo de democratização terá mais cedo ou mais tarde de lidar com a fratura dos cidadãos versus bandidos. Na base do estado de direito está o princípio da generalidade da lei. É isso que garante os cidadãos contra o arbítrio – saber que todos estamos igualmente submetidos ao império do direito. Enquanto as desigualdades sociais significarem desigualdade de distribuição de justiça e desigualdade de respeito a direitos, a democracia estará em risco.

Em tempos de crise, a coisa piora. Compreender a complexidade dos elementos que compõem uma crise da envergadura como a que estamos vivendo dá mais trabalho. Envolve reconhecer problemas históricos, complexos, estruturais e assumir certo grau de responsabilidade coletiva. No momento do nervosismo e do medo, explicações simplistas e soluções fáceis – que estão sempre à mão, oferecidas por populistas, políticos enfraquecidos ou noticiários querendo audiência – parecem soar convincentes. Ter um bode expiatório possui um efeito emocional de alívio. Não são novas as relações entre crise econômica e ascensão de governos fascistas. O bom entendedor já pensou na Alemanha nazista.

Por isso, a pior crise política é a que aprisiona o debate político no governo pelo crime. As consequências a longo prazo são perversas, pois transforma todos os nossos problemas sociais em problemas penais, para os quais cabe uma única (e ineficiente) resposta. Impede que políticas públicas reais sejam discutidas, repensadas e gestadas. Obstaculiza o debate pelo aperfeiçoamento de nossas instituições. Esgarça o tecido social com segregação, medo e desconfiança. Em vez de cidadãos que querem discutir as raízes e as soluções de nossos problemas, transforma-nos em vítimas ou potenciais vítimas à espera da proteção do Estado penal ou da empresa de segurança que pudermos pagar.

Marta Rodriguez de Assis Machado

Marta Rodriguez de Assis Machado é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e pesquisadora do Cebrap

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