sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Crônicas do Dia - Confissões de Natal - Arnaldo Bloch

Lembro com que alívio li, no “Auto da Compadecida”, que Jesus talvez fosse negro


Trovinha pobre de Natal: quando eu era pequenino, acreditava em Papai Noel. Aos cinco anos vi o velho barbudo desembarcar no gramado do Maracanã e acreditei piamente que se tratava do original.

Estranhei que no lugar do trenó voador com renas ele saísse de um helicóptero, mas deixei esse detalhe para examinar mais tarde.

Era comum um menino judeu no Rio setentista ligar-se no Natal, em seus mitos e suas lendas. E até mesmo na figura do menino Jesus. Eu já era carioca, se não da gema, ao menos do ovo. A cidade ainda não havia sido por todo dominada pela especulação imobiliária, e a estátua do Cristo Redentor era, de fato, onipresente.

Eu tinha a tendência de acreditar em barbudos. Hoje, há quem diga que deixar crescer a barba é esconder a cara (vide Eurico).

Mas o Criador era barbudo. Moisés era barbudo. Papai Noel: barbudo. Os rabinos, só barba. Os Beatles na janela, num disco de minha mãe, eram barbudos. Logo...

Ainda não tinha discernimento para saber que Jesus era judeu. Que nasceu assim e foi circuncidado no oitavo dia (o dia 1º do calendário gregoriano é feriado: “Dia da circuncisão do Senhor). Que fez Bar-Mitzva aos 13.

Que morreu judeu.

Não ouvira falar da tese do deicídio. Então, como dizia um rock dos tempos de faculdade, “Jesus era um cara legal” .

Um dia, quando era mais crescido, meu pai chegou com aquela cara de sacana.

— Pensa bem, “Rui Barbosa”. Você acha mesmo que existe um bondoso senhor barbudo sentado numa cadeira vendo o mundo?

E caiu numa gargalhada indecente. De fato, a ideia era absurda. A de um senhor barbudo. E, mais: a de que esse senhor era “bondoso”.

Logo adquiri o senso para ver que a Criação, fosse o que fosse, não era uma obra de caridade.

Tampouco um ato (ou um fato) maldoso.

Ademais, o velho criador — pelo que lia, na escola — era enfezado e vingativo. Parecia-se com um monte de gente que eu conhecia.

Será que ele existia? Ou éramos nós que existíamos e, solitários, criávamos espelhos para justificar o susto de termos sido confinados numa bolha de belezas e horrores?

Lembro com que alívio li, no “Auto da Compadecida”, que Jesus talvez fosse negro.

O que ali era um artifício para testar o racismo de João Grilo (e revelar as idealizações que cercam os ícones) mais adiante se mostraria uma hipótese aceitável, haja vista a morenice dos habitantes da Terra Santa.

Passei a desconfiar dos barbudos e, eventualmente, dos louros de olhos azuis. No filmaço “Jesus Christ Superstar”, Judas era negro (e cantava pra cacete) e sua posição não era apenas a de um traidor, mas de alguém que tentou chamar Jesus — que andava pirado — à razão. Mau palpite... Ali, mexia-se ao mesmo tempo com a pecha racista e com uma redenção alternativa, pela ambiguidade da fábula da ascensão.

Bom, o natural era que, com tantos questionamentos eu logo passasse a nutrir por Papai Noel exatamente o oposto da pueril fantasia infantil: se barbudos tão importantes quanto o Criador eram figuras complexas, questionáveis, Papai Noel, então, era um picareta.

Ou melhor, criação de uma engrenagem de picaretas. Não a lenda em si: um velho barbudo vestido de vermelho num trenó voador é uma ideia absurda, mas, eventualmente, fofinha.

Por outro lado, um velho que distribui presentes a todas as boas crianças do mundo é um conceito insidioso. Instala a ideia de que há crianças más (ora, elas foram lançadas num mundo convulso!).

Ou o oposto: faz crer que há crianças “boas”, num sentido essencial. Pior ainda: disfarçado numa espécie de educador sobrenatural, Papai Noel oferece suborno às crianças que se comportarem bem, assinalando aos “maus” que, em troca de uma vantagem material, vale a pena abraçar a hipocrisia e a mentira. Corrupção?

E, por fim, a maior das imposturas: Papai Noel, mesmo na hipótese infinitesimal de existir um bom velhinho voador, foi cooptado pelo mercantilismo mais viral. A ponto de se transformar num mero garoto de propaganda não tão garoto assim, clonado e multiplicado na pele de postulantes a emprego temporário mal pagos em lojas de departamento e nichos de shoppings calorentos.

Nada disso, porém, me fez nem me fará desistir do Natal. A comida é deliciosa. A salada de aipo com endívias do Severino, cozinheiro do meu tio, e seu bolo de nozes molhado, sem excessos de creme, são memórias que enchem o estômago de luz.

Ou aquele Petit Shiraz nacional presenteado pelo saudoso Tarlis Batista. No final dos anos 1980, quando as vinícolas do RGS ainda não eram badaladas, o vinho do Tarlis caiu divinamente com um peru com farofa ofertado pela nossa amiga Marcolina.

Como dizia o tal tio meu, os judeus perderam Jesus por um problema de relações públicas. E como diz o Cony, o cristianismo é o judaísmo com um superprojeto de marketing. Assim, no bom humor, peço que não me queiram mal e desejo o Natal mais lindo.

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