PASQUALE CIPRO NETO
O Dia dos Namorados está chegando. Como sempre, trocar-se-ão muitos presentes, motéis ficarão superlotados, far-se-ão juras de amor infinito ("enquanto dure") etc.
Bem, meu assunto não é esse, mas não posso deixar de aproveitar a data para falar do interessante processo de formação das palavras "namorar" e "enamorar". Qual vem de qual? Ou uma nada tem que ver com a outra?
O começo da brincadeira é a palavra "amor", da qual se forma "enamorar" ("en" + "amor" + "ar"), pelo mesmo processo que dá origem a inúmeras palavras de nossa língua, como "enfiar" ("en" + "fio" + "ar"), "encaixar" ("en" + "caixa" + "ar"), "encabeçar" ("en" + "cabeça" + "ar") etc.
De "enamorar" se faz, por aférese, "namorar". E que diabo é "aférese"? É a eliminação de um fonema ou de um grupo de fonemas do início de uma palavra, como ocorre com "Zé", forma aferética (e popular) de "José".
A esta altura, convém dizer que nem sempre o termo que resulta de aférese mantém plena identidade semântica com a palavra de que deriva. Talvez se possa dizer isso a respeito do uso atual de "enamorar" e "namorar".
O verbo "enamorar" tem sido empregado com o sentido de "inspirar amor", "encantar". Quando pronominal ("enamorar-se"), aproxima-se semanticamente de "apaixonar-se". "Namorar" também aparece nos dicionários com o sentido de "enamorar", como se vê neste exemplo do "Aurélio": "Sete anos e nove meses tinha ele de casado com a Luzia. Namorava-o o seu lindo cabelo preto, o seu rosto de nazarena" (Trindade Coelho, "Os Meus Amores").
No trecho citado, "namorava-o" equivale a "encantava-o". O uso vivo mais comum de "namorar", no entanto, certamente não é esse. Talvez seja o de "manter relação de namoro", "ser namorado de", seguido do caso em que tem o sentido de "cobiçar", "desejar" ("Faz tempo que ele namora aqueles livros e aqueles discos").
A aférese não deve ser confundida com a prótese (sim, como aquela do dentista), que é o acréscimo de fonema(s) no início de uma palavra, sem que isso cause alteração de sentido, o que se vê em "apetrechos", que vem de "petrechos", que, por sua vez, vem do espanhol "pertrechos" (com o primeiro "r", sim).
Quer um belo exemplo de prótese? Recorramos a "Paratodos", de Chico Buarque: "Vi cidades, vi dinheiro/Bandoleiros, vi hospícios/ Moças feito passarinho/Avoando de edifícios...". O exemplo de prótese está em "avoando", gerúndio de "avoar", que vem de "voar" (que vem do latim "volare").
A opção de Chico por "avoando" certamente foi determinada pelo ritmo e pela métrica. Como diz a letra ("Foi Antônio Brasileiro/Quem soprou esta toada/Que cobri de redondilhas..."), os versos têm sete sílabas poéticas, ou seja, são redondilhas. Além de evitar o "buraco" na música, "avoando" mantém o número de sílabas necessário para a redondilha ("a-vo-an-do de e-di-fí-cios").
Como se sabe, conta-se até a última sílaba tônica do verso ("fí", de "edifício") e pode-se suprimir a vogal átona que encerra uma palavra (o "e" de "de") quando a palavra seguinte começa com vogal (o "e" de "edifícios"). É isso.
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