terça-feira, 7 de junho de 2016

Crônica do dia - Charles Chaplin - Manuel Bandeira


Não há hoje no mundo, em qualquer domínio de atividade artística, um artista cuja arte contenha maior universalidade que a de Charles Chaplin. A razão vem de que o tipo de Carlito é uma dessas criações que, salvo idiossincrasias muito raras, interessam e agradam a toda a gente. Como os heróis das lendas populares ou as personagens das velhas farsas de mamulengo.


Carlito é popular no sentido mais alto da palavra. Não saiu completo e definitivo da cabeça de Chaplin: foi uma criação em que o artista procedeu por uma sucessão de tentativas e erradas.

Chaplin observava sobre o público o efeito de cada detalhe.

Um dos traços mais característicos da pessoa física de Carlito foi achado casual. Chaplin certa vez lembrou-se de arremedar a marcha desgovernada de um tabético. O público riu: estava fixado o andar habitual de Carlito.

O vestuário da personagem - fraquezinho humorístico, calças lambazonas, botinas escarrapachadas, cartolinha - também se fixou pelo consenso do público.

Certa vez que Carlito trocou por outras as botinas escarrapachadas e a clássica cartolinha, o público não achou graça: estava desapontado. Chaplin eliminou imediatamente a variante. Sentiu com o público que ela destruía a unidade física do tipo. Podia ser jocosa também, mas não era mais Carlito.

Note-se que essa indumentária, que vem dos primeiros filmes do artista, não contém nada de especialmente extravagante. Agrada por não sei quê de elegante que há no seu ridículo de miséria. Pode-se dizer que Carlito possui o dandismo do grotesco.

Não será exagero afirmar que toda a humanidade viva colaborou nas salas de cinema para a realização da personagem de Carlito, como ela aparece nessas estupendas obras-primas de humour que são O Garoto, Ombro Arma, Em Busca do Ouro e O Circo.

Isto por si só atestaria em Chaplin um extraordinário dom de discernimento psicológico. Não obstante, se não houvesse nele profundidade de pensamento, lirismo, ternura, seria levado por esse processo de criação à vulgaridade dos artistas medíocres que condescendem com o fácil gosto do público.

Aqui é que começa a genialidade de Chaplin. Descendo até o público, não só não se vulgarizou, mas ao contrário ganhou maior força de emoção e de poesia. A sua originalidade extremou-se. Ele soube isolar em seus dados pessoais, em sua inteligência e em sua sensibilidade de exceção, os elementos de irredutível humanidade. Como se diz em linguagem matemática, pôs em evidência o fator comum de todas as expressões humanas. O olhar de Carlito, no filme O Circo, para a brioche do menino faz rir a criançada como um gesto de gulodice engraçada. Para um adulto pode sugerir da maneira mais dramática todas as categorias do desejo. A sua arte simplificou-se ao mesmo tempo que se aprofundou e alargou. Cada espectador pode encontrar nela o que procura: o riso, a crítica, o lirismo ou ainda o contrário de tudo isso.

Essas reflexões me acudiram ao espírito ao ler umas linhas da entrevista fornecida a Florent Fels pelo pintor Pascin, búlgaro naturalizado americano. Pascin não gosta de Carlito e explicou que uma fita de Carlito nos Estados Unidos tem uma significação muito diversa da que lhe dão fora de lá. Nos Estados Unidos Carlito é o sujeito que não sabe fazer as coisas como todo mundo, que não sabe viver como os outros, não se acomoda em meio algum, - em suma um inadaptável. O espectador americano ri satisfeito de se sentir tão diferente daquele sonhador ridículo. É isto que faz o sucesso de Chaplin nos Estados Unidos. Carlito com as suas lamentáveis aventuras constitui ali uma lição de moral para educação da mocidade no sentido de preparar uma geração de homens hábeis, práticos e bem quaisquer!

Por mais ao par que se esteja do caráter prático do americano, do seu critério de sucesso para julgamento das ações humanas, do seu gosto pela estandardização, não deixa de surpreender aquela interpretação moralista dos filmes de Chaplin. Bem examinadas as coisas, não havia motivo para surpresa. A interpretação cabe perfeitamente dentro do tipo e mais: o americano bem verdadeiramente americano, o que veda a entrada do seu território a doentes e estropiados, o que propõe o pacto contra a guerra e ao mesmo tempo assalta a Nicarágua, não poderia sentir de outro modo.

Não importa, não será menos legítima a concepção contrária, tanto é verdade que tudo cabe na humanidade vasta de Carlito. Em vez de um fraco, de um pulha, de um inadaptável, posso eu interpretar Carlito como um herói. Carlito passa por todas as misérias sem lágrimas nem queixas. Não é força isto? Não perde a bondade apesar de todas as experiências, e no meio das maiores privações acha um jeito de amparar a outras criaturas em aperto. Isso é pulhice?

Aceita com estoicismo as piores situações, dorme onde é possível ou não dorme, come sola de sapato cozida como se se tratasse de alguma língua do Rio Grande. É um inadaptável?

Sem dúvida não sabe se adaptar às condições de sucesso na vida. Mas haverá sucesso que valha a força de ânimo do sujeito sem nada neste mundo, sem dinheiro, sem amores, sem teto, quando ele pode agitar a bengalinha como Carlito com um gesto de quem vai tirar a felicidade do nada? Quando um ajuntamento se forma nos filmes, os transeuntes vão parando e acercando-se do grupo com um ar de curiosidade interesseira. Todos têm uma fisionomia preocupada. Carlito é o único que está certo do prazer ingênuo de olhar.


Neste sentido Carlito é um verdadeiro professor de heroísmo. Quem vive na solidão das grandes cidades não pode deixar de sentir intensamente o influxo da sua lição, e uma simpatia enorme nos prende ao boêmio nos seus gestos de aceitação tão simples.

Nada mais heróico, mais comovente do que a saída de Carlito no fim de O Circo. Partida a companhia, em cuja troupe seguia a menina que ele ajudara a casar com outro, Carlito por alguns momentos se senta no círculo que ficou como último vestígio do picadeiro, refletindo sobre os dias de barriga cheia e relativa felicidade sentimental que acabava de desfrutar. Agora está de novo sem nada e inteiramente só. Mas os minutos de fraqueza duram pouco. Carlito levanta-se, dá um puxão na casaquinha para recuperar a linha, faz um molinete com a bengalinha e sai campo afora sem olhar para trás. Não tem um vintém, não tem uma afeição, não tem onde dormir nem o que comer. No entanto vai como um conquistador pisando em terra nova. Parece que o Universo é dele. E não tenham dúvida: o Universo é dele.

Com efeito, Carlito é poeta.

(Em: Crônicas da Provinda do Brasil. 1937.)

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