quarta-feira, 19 de julho de 2017

Você sabia disso ? - Valongo e barriga de aluguel

Dias atrás, líamos em O Globo artigo do escritor Dodô Azevedo defendendo a ideia de que o Cais do Valongo, agora reconhecido como “patrimônio da humanidade” pela Unesco, seria o “útero” do Brasil. Concordando em absoluto com os argumentos do articulista, tomamos a liberdade de acrescentar, aqui, nosso temor. De que, agora, a História afro-brasileira comece a servir de “barriga de aluguel” para a gestação, nesse útero, de ações e negócios contrários aos interesses dos descendentes, mesmo presumíveis ou simbólicos, dos infelizes desembarcados no sítio histórico agora celebrado.


O título concedido pela Unesco inclui a região do Valongo no âmbito internacional do chamado “turismo de memória”; e tem tudo para transformar o Rio em uma das mecas dessa vertente turística. É assim, por exemplo, que no atual Benin, antiga Costa dos Escravos, se exibe o caminho à beira-mar por onde, na época escravista, passavam cativos em seu embarque para as Américas, até chegarem ao “Ponto do não-retorno”, hoje decorado com baixos-relevos retratando vítimas acorrentadas. Da mesma forma, em Gana, antiga Costa do Ouro, são atrações: a fortaleza de São Jorge da Mina, a “Porta do não-retorno” (funesta expressão recorrente) e a cela onde os colonialistas ingleses mantiveram encarcerado por quatro anos, antes do exílio, um rei axanti que ousou contrariar os interesses de Sua Majestade britânica. E, ainda, na ilha senegalesa de Gorée, onde o turista, pagando ingresso, pode visitar a “Casa dos Escravos”; e descer até o mar, pela famosa escada circular por onde desciam os cativos acorrentados a caminho das Américas.

Na fila pelos dividendos do ato da Unesco em relação ao Valongo figura a Prefeitura do Rio. A mesma que, neste momento é objeto das atenções da OAB-RJ, por conta do viés discriminatório de algumas iniciativas que, segundo o presidente da respeitável entidade pretendem “mudar o jeito de ser do carioca”. E aí, evocamos declaração do atual titular da Prefeitura, segundo o qual “o diabo tem usado a palavra ‘tradição’, na África, como um belo embrulho de presente para disfarçar toda uma pilha de rituais perversos” (O Globo, 16/10/2016, pág. 3, matéria O evangelho segundo Crivella, do jornalista Fernando Molica). Recorremos a essa citação, lembrando que o Valongo foi no Brasil a porta de entrada, sem retorno, de boa parte dos conteúdos afro-originados que até hoje alimentam religiões legitimadas e protegidas pela Constituição Federal e que têm sido objetivamente vilipendiadas em pregações e ações da Igreja da qual o atual titular da Prefeitura é membro ativo. Lembramos também que, na questão do Valongo, sobressaem duas linhas de interesses, a econômica e a histórica; e que, salvo melhor juízo, a segunda não parece ser a da atual administração municipal carioca, a qual, antes de tudo, melhor faria se implementasse a aplicação a Lei 10.639 de 2003 que obriga o ensino de História da África nas redes de ensino.

O Valongo é antes de tudo uma forte marca da ancestralidade africana no Brasil. Os que por lá chegaram, e até mesmo os “pretos novos” que lá mesmo sucumbiram, precisam ser reconhecidos e propiciados, para a merecida paz de seus espíritos. E este não é certamente o objetivo dos interesses da atual administração municipal. Pois como diz um provérbio do repertório ancestral africano “um carneiro não bebe em dos lugares ao mesmo tempo”.

Assim como o ouro, o marfim e o sangue dos africanos escravizados enriqueceram a Europa, o potencial turístico do Valongo não tem que servir ao empoderamento dos que visam destruir a Historia e a Cultura afro-brasileira.

http://neilopes.com.br/2017/07/19/valongo-e-barriga-de-aluguel/

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