Sambista que fez história ao unir no seu som o Brasil e a África, Clementina de Jesus partia há exatas três décadas. O POVO conversou com Hermínio Bello de Carvalho, "descobridor" dessa voz marcante
Neta de escravos e empregada doméstica, Clementina de Jesus viveu o amor pela música, até os 63 anos, cantando em bares e restaurantes no Rio de Janeiro. Foi quando o caminho do poeta, compositor e produtor cultural Hermínio Bello de Carvalho cruzou com o dela na Taberna da Glória. “Dizem que eu descobri (a Clementina). Eu não descobri porra nenhuma! Eu só prestei atenção. Se as pessoas prestassem atenção uma nas outras iam descobrir tanta coisa boa”, contrapõe Hermínio, aos 82 anos, em entrevista ao O POVO. Há exatos 30 anos, morria Quelé – apelido que ela carregou desde a infância –, a voz da artista, porém, segue ecoando na música brasileira.
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“Ela não era só uma negra velha que cantava em quintal. Era um gênio, sem saber”, continua Hermínio, que apesar de afirmar não ter mais palavras sobre a cantora — “Já são cinquenta anos falando dela, meu filho” — não esconde o orgulho ao lembrar da trajetória da artista. “Ela está aí, viva, ainda hoje dentro do canto brasileiro. Continua sendo o elo perdido entre o Brasil e a África”.
Apesar do início tardio de sua carreira, Clementina de Jesus (1901-1987) gravou cinco álbuns, além de participações em inúmeras coletâneas e discos. Ela “surgiu” para a cena musical brasileira com o espetáculo musical coletivo Rosa de Ouro (1965), que revelou também Paulinho da Viola, um então estreante de 22 anos. A partir desse musical, Quelé chamou atenção de plateias por todo o País — apesar de nunca ter sido um grande sucesso em vendagem de discos, talvez por ter gravado temas folclóricos ou pela voz fora dos padrões estéticos tradicionais.
“A Clementina é o retrato da maioria da nossa população, da nossa gente. Ela teve uma vida muito difícil e foi uma mulher muito forte”, se inspira Janaina Marquesini, uma das autoras da Biografia Quelé - A voz da cor (Civilização Brasileira, 384 páginas). Escrita também por Felipe Castro, Luana Costa e Raquel Munhoz, a obra nasceu como trabalho de conclusão do curso de Jornalismo da Universidade Metodista de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, mas foi além dos muros da faculdade e se desdobrou em seis anos de pesquisa.
Janaina pontua que a sambista fez história ao gravar em discos cantos conhecidos somente por nichos. “Uma das maiores riquezas que tem na obra dela é o registro da nossa cultura popular, que antes só se conhecia pela tradição oral. Ela sabia o canto que aprendeu com os avós, que eram escravos. Clementina tinha uma memória preciosa”, aponta.
Para a pesquisadora, Quelé foi um marco por dar uma guinada na Música Popular Brasileira que estava centrada na surgimento da Bossa Nova. “Ela rompeu com uma estética que existia no momento que ela começou. Quelé mostra uma identidade do Brasil que o País ainda não tinha tanta consciência”, detalha. E continua: “Em cada estado do País tem uma cultura popular imensa e tudo estava um pouco misturado no Rio. A Clementina tinha um repertório muito rico e ela mesma não tinha consciência disso. Era natural dela essa pureza que trazia”, detalha.
Nos pouco mais de 20 anos de carreira, gravou com nomes como João Bosco, Milton Nascimento e Alceu Valença, fez temporada na África e Europa e foi estudada por pesquisadores dentro e fora do ambiente acadêmico. “Clementina é a voz dos milhões de negros desfeitos no fazimento do Brasil. Poderosa voz anunciadora do brasileiro que, amanhã, se assumirá como povo mulato, mais africano que lusitano”, escreveu o antropólogo Darcy Ribeiro.
“Clementina trouxe canções e poemas de séculos que estavam aprisionados e gravou isso. Ela tirou do anonimato e gravou em disco dois ou três séculos de cantigas populares e, com a voz única que ela tinha., contribuiu ainda mais. Esse é o grande legado”, finaliza Hermínio.
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