O final trágico de um romance entre o escritor Oswald de Andrade e a estudante Daisy Pontes mostra como os modernistas não conseguiram se livrar dos preconceitos do início do século XX
RUAN DE SOUSA GABRIEL
Toda vez que o escritor Marcos Rey (1925-1999) visitava Oswald de Andrade (1890-1954), ouvia a mesma pergunta: “Você acha que eu fui o culpado?”. Rey passava na casa de Oswald três vezes por semana, sempre pela manhã, para discutir um livro que escreveriam juntos. Mas o velho modernista não queria mais falar de literatura. O assunto sempre voltava a Maria de Lourdes Castro Pontes, a Daisy, uma moça com quem ele se envolveu entre 1917 e 1919. O romance teve um final terrível, e Oswald se perguntava se havia sido o culpado. Num depoimento gravado pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) para as comemorações do centenário de Oswald, Rey recordou como o fantasma de Daisy o assombrava. Esse depoimento ajudou o historiador, publicitário e produtor cultural José Roberto Walker a ajustar o foco de Neve na manhã de São Paulo (Companhia das Letras, 368 páginas, R$ 59,90). O romance de não ficção acompanha as peripécias de Oswald e a trupe de boêmios que se reunia na famosa garçonnière da Rua Líbero Badaró, no centro de uma Pauliceia que começava a se desvairar.
Walker baseou seu livro numa sólida pesquisa histórica – até os boletins escolares de Daisy ele levantou. Todos os fatos narrados no romance foram recolhidos na farta documentação existente sobre esse período da vida dos personagens. Apenas o personagem Pedro Rodrigues de Almeida recebeu um tratamento ficcional. Pedro era um dos frequentadores da garçonnière, mas trocou a boemia e os sonhos literários por um cargo de delegado no interior. Walker o redimiu ao transformá-lo no narrador de Neve na manhã de São Paulo. Quando ouve que Oswald faleceu, Pedro decide escrever sobre o passado numa tentativa de responder à pergunta que o amigo sempre lhe fazia: “Você, que acompanhou tudo, que sempre esteve junto de nós, acha que eu fui o culpado?”. O título do romance é uma referência ao dia 25 de julho de 1918, quando a temperatura caiu abaixo de zero e São Paulo amanheceu coberta por uma geada que os paulistanos pensaram ser neve. Não era. A falsa neve virou folclore e contribuiu para a mania dos paulistanos de achar que faz um frio europeu na cidade. Naquela manhã gelada, Oswald e Daisy se amavam no sofá verde de ramagens da garçonnière. Uma bandeira vermelha na porta indicava que eles não queriam ser interrompidos.
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O fascínio de Walker por essa história começou em 1987, quando foi publicada uma edição fac-similar de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, o diário coletivo da garçonnière. As entradas do diário vão de 30 de maio a 12 de setembro de 1918, data em que o “covil dos gravatas” fechou as portas. Os gravatas eram uma dúzia de jovens boêmios com pretensões literárias, que, alguns anos depois, seriam os protagonistas do Modernismo brasileiro, como Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia e, é claro, Oswald de Andrade. Monteiro Lobato já era um escritor afamado e um pouco mais velho que os rapazes, mas também batia ponto na garçonnière. A única saia no meio dos gravatas era Daisy, uma moça de 18 anos, nascida em Cravinhos, no interior de São Paulo, e aluna da Escola Normal. “No começo, parecia mais uma história de amor entre uma menina e um cara famoso que não deu certo e terminou tragicamente, mas vi que não era só isso”, disse Walker em entrevista a ÉPOCA em seu escritório na TV Cultura, em São Paulo, de costas para um belo retrato da Estação da Luz. “Daisy tinha uma personalidade tão complexa quando a de Oswald.”
Daisy era prima da professora de piano de Kamiá, uma francesa que vivia amasiada com Oswald (leia mais no quadro). O escritor se encantou com aquela mocinha morena e esguia, cujo cabelo revolto caía sobre os olhos numa mecha. Ele perguntou se ela “não gostaria de amá-lo”. “Sim, mas sem premeditação”, respondeu ela. Oswald tinha fama de mulherengo – ou “barba-azul”, como diziam os paulistanos de antigamente. Um ano antes, ele escandalizara a alta sociedade com sua obsessão por uma bailarina de 12 anos. O medo de um novo falatório não o intimidou e ele passou a cortejar Daisy por meio de cartas publicadas em O pirralho, a revista editada pela rapaziada da garçonnière. Depois de alguns meses, Daisy começou a matar aulas e pular o muro da escola para se encontrar com Oswald no covil da Rua Líbero Badaró. Ela logo se transformou no principal assunto do diário. “Daisy anima a turma toda”, escreveu Oswald. Nem Lobato, um pai de família respeitável, resistia aos encantos da normalista. Um dia, distraiu-se tanto com as graças de Daisy que esqueceu os originais de seu livro de contos Urupês no sofá de ramagens. Nas páginas de O perfeito cozinheiro, Daisy era chamada de “Miss Cyclone”, um apelido cunhado por Oswald que resume bem o charme devastador da normalista.
Daisy se revelou muito mais rebelde e moderna do que aqueles rapazes boêmios. Ela conversava com eles de igual para igual e dava palpites sobre literatura, política e os rumos da guerra na Europa. Assim como a cidade que se modernizava a sua volta, ela pensava apenas no futuro e não tinha nenhum compromisso com o passado. Oswald e sua trupe boêmia não contestavam os valores da sociedade e estavam conformados com a pacata vida familiar que o futuro lhes reservava, desde que pudessem aproveitar a mocidade na farra. Daisy, porém, era diferente dos gravatas e não tinha medo de romper com as amarras sociais e familiares e, se preciso fosse, pagar o preço por sua rebeldia. “Daisy levava suas convicções até as últimas consequências. Oswald sempre foi mais devagar”, diz Walker.
No ensaio Réquiem para Miss Cyclone, musa dialógica da pré-história textual oswaldiana, o poeta concretista Haroldo de Campos afirma que Daisy “é a pré-Pagu da Idade Boêmia de Oswald”. Patrícia Galvão, a Pagu, mulher de Oswald entre 1930 e 1935, encorajou a radicalização política do marido, levando-o a se filiar ao Partido Comunista. A contribuição de Daisy se deu no plano da estética. Segundo Campos, Miss Cyclone ajudou Oswald “a afiar sua navalha crítica para os polêmicos anos dos romances-invenções da década de 1920”. Oswald, no entanto, não estava preparado para tanta modernidade. O namorico com Daisy não o afastou de Kamiá ou de suas aventuras com atrizes e dançarinas, mas ele exigia que a normalista lhe fosse fiel. A ciclônica Daisy se recusava a dar satisfações sobre o que fazia, aonde ia e com quem se encontrava. Oswald enlouquecia de ciúmes e fazia escândalos quando ouvia histórias sobre um farmacêutico do Brás ou um moço de Cravinhos que paqueravam a normalista. Ou quando a viu entrando numa pensão de rapazes.
Quando Daisy apareceu grávida, Oswald duvidou que o filho fosse dele e a pressionou a fazer um aborto. Ela não queria, mas ele tanto insistiu que a moça, então com 19 anos, acabou por concordar. Houve complicações. Daisy teve hemorragias e febre alta e precisou ser internada. O médico recomendou uma histerectomia – a extirpação do útero. A cirurgia não adiantou e ela piorou ainda mais. Numa tentativa de expiar a culpa, Oswald se casou com Daisy no quarto do hospital, no dia 14 de agosto de 1919. Toda a rapaziada da garçonnière compareceu à cerimônia. Guilherme de Almeida e Monteiro Lobato foram os padrinhos. “Que pena!”, foram as únicas palavras que a noiva conseguia repetir enquanto recebia os cumprimentos. Morreu dez dias depois, num domingo.
O modo desastroso como Oswald se comportou com Daisy revela as contradições da modernização (e do Modernismo) brasileira, que marcha rumo ao futuro arrastando consigo um passado conservador e violento, num esforço de conciliar algum progressismo com os valores mais atrasados. “Ele, que combateu toda a vida os preconceitos, acabou sendo agente de um preconceito”, afirmou Marcos Rey no depoimento sobre suas manhãs com Oswald. “Ele sentiu isso com uma angústia tão grande que isso era mais importante do que a obra literária dele. A obra literária dele já não valia nada, o que ele queria era saber se tinha culpa.” Nem Oswald, o mais rebelde de nossos modernistas, conseguiu romper com as amarras de nossa herança conservadora e acabou negando a Daisy, mulher e de classe social mais baixa, a liberdade que ela exigia. “Que pena!”
Revista Época
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