Quase dez anos depois de lançado o último volume, Rowling e seus novos parceiros conseguiriam manter viva a mágica? Não há outra resposta possível: sim, eles conseguiram
HELIO GUROVITZ
Em 1998, um ano depois de sair no Reino Unido, o primeiro volume da série Harry Potter foi lançado nos Estados Unidos e estourou no mundo todo. Sob a assinatura J.K. Rowling, sua autora vendeu desde então mais de 450 milhões de cópias dos sete livros da série. Transformados em oito filmes, renderam quase US$ 8 bilhões nas bilheterias. Não foi uma surpresa, portanto, que o lançamento oficial de um novo volume, com o roteiro da peça em duas partes que estreou no último fim de semana em Londres, tenha se tornado uma febre instantânea. Previstas inicialmente para agosto e setembro, as encenações foram estendidas até dezembro de 2017, e os ingressos estão esgotados pelo menos até maio – também há uma loteria para sortear 40 lugares livres por semana e um intenso (e proibido) mercado paralelo. Há notícias de montagens previstas para Toronto e Nova York, e é difícil imaginar que a peça não rode o mundo todo – a versão brasileira do livro será lançada em 31 de outubro, com pré-venda a partir de 16 de agosto. Para qualquer um familiarizado com o universo de Harry Potter e o mundo mágico da escola de Hogwarts, só havia uma dúvida: quase dez anos depois de lançado o último volume, Rowling e seus novos parceiros – Jack Thorne e John Tiffany – conseguiriam manter viva a mágica? Não há outra resposta possível: sim, eles conseguiram.
A primeira razão é a mesma que explica o sucesso de Rowling desde o início. Ela é mestre na arte da narrativa. Como ninguém, sabe criar reviravoltas e um suspense eletrizante, numa corrida de obstáculos e pistas falsas que, embora todos imaginemos como terminará, nunca deixa de surpreender no final. Seu trunfo desta vez é um artifício já usado por outros autores e dramaturgos: viagens ao passado. O roteiro de Rowling parece inspirado na peça Copenhague, que estreou em Londres também em 1998. Nela, o dramaturgo Michael Frayn imagina três possíveis diálogos para um encontro secreto dos físicos Niels Bohr e Werner Heisenberg em Copenhague, em 1941. Bohr, filho e marido de judias, precisava fugir do nazismo. Heisenberg, antes discípulo de Bohr, aderira ao Terceiro Reich e comandava as pesquisas nucleares alemãs. Era natural que os dois debatessem armas atômicas. Mas, quando Frayn escreveu a peça, ninguém sabia ao certo do que falaram (em 2002, novas evidências revelaram o conteúdo do diálogo). Num conceito emprestado da própria mecânica quântica de Bohr e Heisenberg, a peça de Frayn vai e volta no tempo três vezes, como se três histórias paralelas fossem simultaneamente possíveis.
LIVRO DA SEMANA - Harry Potter e a criança amaldiçoada - J.K. Rowling, John Tiffany e Jack Thorne (Foto: Divulgação)
No mundo dos bruxos, voltar ao passado não é exatamente uma façanha. Basta dispor de um dispositivo conhecido como vira-tempo (vide Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban). Todos os vira-tempos foram destruídos, eles estão há muito proibidos, ninguém deve brincar de mexer com o que aconteceu no passado, as consequências podem ser imprevisíveis no futuro, mas, mas… nada disso é empecilho para Rowling, certo? Eis que encontramos novamente Harry, 36 anos, levando seus filhos para pegar o expresso de Hogwarts na plataforma 9 3/4 da estação King’s Cross. O herói do novo livro é Alvo Severo Potter, filho do meio de Harry. Alvo tem uma relação dificílima com o pai, funcionário graduado no Ministério da Magia. Como corresponder às expectativas de alguém tão célebre, do herói que salvou o mundo do hediondo Lorde das Trevas, Voldemort? Alvo se sente um inútil. Seu maior medo, logo no início, é que seja destinado à casa mais soturna de Hogwarts, Sonserina, que abrigou não apenas Voldemort, mas também partidários dele e inimigos de Harry, como o mimado e arrogante Draco Malfoy. Ao chegar, não dá outra. Alvo vai para Sonserina e, num enrosco da narrativa, se torna o melhor amigo do filho de Draco, Scorpio. Para tentar reparar um erro de Harry no passado, a dupla se apodera de um vira-tempo que restara (viu como é fácil?). Voltam ao passado, e suas ações têm efeitos dramáticos que só descobrem ao retornar ao presente. E lá vão eles voltar no tempo de novo, para tentar consertar o estrago.
A volta ao passado, a busca pela história do pai são temas ancestrais na literatura. Estão na Bíblia, na Odisseia de Homero, no Hamlet de Shakespeare, no Ulysses de James Joyce e até em Copenhague de Frayn. Assim como Bohr, “pai intelectual” de Heisenberg, não se conforma com os caminhos que seu filho espiritual assumira ao apoiar o nazismo, Harry também se decepciona com as escolhas de Alvo. A ficção permite não apenas que o filho volte ao passado, onde consegue entender melhor o pai. Mostra que, por mais que fantasmas do passado os assombrem, é apenas no presente, enfrentando a realidade dura de suas emoções, que pais e filhos conseguem se reconciliar. Não há viagem no tempo, história paralela, nem mágica capazes de mudar isso. Também não há mágica melhor.
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