Se há alguma coisa que nos une é o medo de Donald Trump tornar-se o presidente dos EUA. É o tipo de desastre político que atingiria a todos
Um dos mais interessantes comentários que li sobre o espetáculo de abertura da Olimpíada: parece um pesadelo de Trump. Diversidade, aquecimento global, celebração das diversas levas de imigrantes e até uma delegação de refugiados nos jogos — Trump passaria toda a noite pensando naquelas cenas e, naturalmente, nos muros e proibições para evitá-las.
Na lagoa sem fronteiras, matinal, agora encontro gente de muitas partes do mundo. E penso: se há alguma coisa que nos une é o medo de Donald Trump tornar-se o presidente dos EUA. É o tipo de desastre político que atingiria a todos. Vejo dois homens com a camisa da Nova Zelândia e penso na juíza americana Ruth Bader Ginsburg, que, em caso de vitória de Trump, disse que seria tempo de se mudar para a Nova Zelândia.
Mas será que haverá lugar para todo mundo na Nova Zelândia? Onde o planeta encontraria seu refúgio? Em poucos momentos vi a cidade tão cheia e, certamente, tão cheia de estrangeiros. Hoje com os aplicativos de rotas, tradução, roteiros gastronômicos, eles não precisam falar tanto com os nativos. Observo na imprensa estrangeira uma certa inquietude com o comportamento da torcida brasileira. Mas o esporte mais popular no Brasil é o futebol e torcidas de futebol, no mundo inteiro, são bem mais barulhentas, debochadas e, em alguns casos, violentas. Estão sendo confrontados com diferentes e quase desconhecidas modalidades esportivas. Na medida em que entenderem, começam a gostar do jogo e vão usar o silêncio em nome da qualidade do espetáculo.
Tenho visto muitos jogos. Às vezes, fico culpado por não estar estudando. Mas o mundo do esporte de alta performance pode me ensinar tanto quanto os livros. Observo que quase todos os atletas se referem ao esporte a que se dedicam quase como um sacerdócio, como uma forma também de entender a vida, seus altos e baixos, a força do trabalho cotidiano na superação dos limites. Como são importante para eles o foco e a concentração. Certamente já se estudou isso em outras modalidades. Mas ao ver a disputa de tiro com arco lembrei-me de um livro clássico: “Zen e arte do tiro com arco”, de Eugen Herrigel. Nesse livro, a prática do esporte e a reflexão sobre a vida se entrelaçam. O arqueiro precisa respirar adequadamente, ajustar-se ao seu arco como se fosse uma extensão do próprio corpo.
Um verso do poeta Affonso Romano de Sant’Anna enfatiza essa unidade: o guerreiro solta a seta e no alvo se completa. Essa integração com o instrumento e o estar atento no mundo são poderosos exemplos. O universo dos atletas de alta performance é povoado de gente supertalentosa. No entanto, assim como em quase todos os outros campos, se não trabalham duro não conseguem os resultados. Claro que esses elementos não bastam. A criatividade, um lampejo tático podem virar uma partida. Mas a cabeça só ajuda quem tem pernas. Nem todos orientam sua vida para ganhar medalhas e superar limites, logo não precisam dessa concentração e disciplina.
Mas aqui no Rio, diante de tantas competições, vitórias, derrotas, contusões, de uma certa forma, mergulhamos no universo do esporte quase sempre em busca de alegria e emoções. Mas os atletas, nas suas entrevistas, parecem transmitir, por assim dizer, uma filosofia de vida. Claro que daqui a pouco voltaremos ao nosso difícil cotidiano mas pode estar aí um legado da Olimpíada; respirar bem, concentrar-se e trabalhar duro. Não ganharemos medalhas, nem aplausos da torcida, mas em qualquer encrenca em que estejamos metidos, respirar bem, concentrar-se e trabalhar duro, de alguma forma, ajudam.
Quando a torcida grita fora de hora e mesmo quando os locutores exageram no tom patriótico, emitem sinais de que não estamos inteiramente aqui, como espectadores. Outro dia, vi um jogo Brasil e Japão. Havia uma japonesa até mais baixa que a média, mas com um incrível talento. Lembrava o que Messi é no futebol. Ela arrasou na partida. Mas só no terceiro tempo, o locutor se deu conta: essa japonesinha está jogando muito — disse ele. O locutor passou dois quartos do tempo vendo apenas o Brasil, falhas, acertos, propondo táticas.
Toda essa intensidade emocional em torno dos atletas brasileiros às vezes não deixa ver tantas japonesinhas passando, na forma de espetaculares atletas. Ou mesmo nos impedem de refletir sobre a sensibilidade diante da euforia e do barulho. A cara das velhinhas numa casa de chá da Alemanha, nos anos 1980, quando entramos três brasileiros falando alto, me fez sentir um extraterrestre. Talvez seja a mesma cara de um atirador na hora do tiro, de um tenista pronto para sacar. Mas se para convivermos na diversidade proposta pela festa da Olimpíada, o problema for apenas de ajustar o volume do som, é um sinal de que ainda vale a pena viver num pesadelo de Donald Trump.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/o-pesadelo-de-trump-19917578#ixzz4IRWwnpcL
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