Obra da fase militante de Ferreira Gullar, Poema sujo ganha nova edição e sobrevive 40 anos depois graças a sua qualidade literária
MARCELO BORTOLOTI
O poeta maranhense Ferreira Gullar tinha 45 anos quando escreveu Poema sujo, sua obra mais importante. Perseguido pela ditadura militar, vivia exilado em Buenos Aires. Era militante comunista e integrava a direção estadual do partido no Rio de Janeiro quando teve de fugir do Brasil depois da prisão de outros dirigentes. Passou por Moscou e Santiago até chegar à Argentina. No país vizinho, a ditadura de Juan Domingo Perón tornava também insustentável a situação dos exilados. Sabia-se que os militares brasileiros tinham livre acesso ao território argentino para capturar os inimigos do regime. Gullar precisava fugir de novo, mas seu passaporte estava vencido. Acuado e esperando o pior, ele deu seu grito de desespero e revolta na forma desse poema com quase 70 páginas.
Gullar leu o poema numa reunião de amigos exilados na Argentina, na qual estava o poeta Vinicius de Moraes. Emocionado com a obra, Vinicius pediu para gravá-la em fita e trouxe ao Brasil, onde a gravação circulou em saraus clandestinos. O sucesso foi imediato e o poema publicado em livro poucos meses depois, em 1976. Desde então, é considerado uma das obras-primas da poesia brasileira. Quarenta anos mais tarde, continua com o mesmo vigor e acaba de ganhar nova edição pela editora Companhia das Letras, com textos de apresentação de Gullar e do poeta Antonio Cicero.
O que mudou nesse período foi a militância do autor. Sem abandonar os ideais de justiça social, ele se tornou um crítico das ideias socialistas, principalmente da esquerda ligada ao PT. Isso valeu a Gullar o ódio e o patrulhamento de velhos companheiros. A postura de combate ao inimigo capitalista cedeu lugar a uma celebração da iniciativa privada: “O empresário é um intelectual que em vez de fazer soneto faz empresa. Ele tem esse talento que não pode ser reprimido”, diz. A fé no socialismo converteu-se numa descrença de utopias. “A sociedade inteiramente igual é injusta porque não existe uma pessoa igual a outra”, afirma.
Enquanto a posição ideológica do poeta desperta simpatia ou ódio nas diferentes nuances da esquerda brasileira, a tucana e a petista, o Poema sujo se manteve alheio a esse debate. Mesmo tendo sido escrito numa época em que Gullar defendia a implantação de um socialismo de modelo cubano no Brasil, e paire sobre ele uma aura política pelas circunstâncias em que foi produzido, o poema não é uma obra panfletária. Nem precisa ser negado hoje como produção de uma fase que contradiz a atual. Muitas das convicções políticas de Gullar à época transparecem em trechos do poema, mas o que sobressai é sua experiência como ser humano, a infância em São Luís, no Maranhão, a vivência sexual, os conflitos familiares e os dilemas da linguagem. Ao longo de sua carreira, Gullar manteve sua poesia a salvo das paixões políticas, o que lhe garante o status de grande poeta. Ele sabe muito bem dessa virtude: “O artista tem de ter como intenção fazer uma obra de arte. Ela pode ser política ou não. Mas, se a intenção política se sobrepõe ao propósito estético, será sempre uma obra ruim”, diz.
Na história recente, a literatura engajada ganhou força em vários momentos de maior tensão ideológica. Enquanto a sociedade vivia um conflito de ideias ou de luta política, o artista não poderia ficar voltado para seu próprio umbigo, falando de passarinhos e borboletas. Como integrante da sociedade, deveria incorporar a sua obra os temas do mundo presente. Essa literatura comprometida estava geralmente vinculada ao movimento de esquerda, mas foi produzida também por grupos alinhados ao poder.
Essa arte engajada várias vezes foi desastrosa. Ao abraçar uma corrente ideológica, o artista muitas vezes simplificava suas ideias e não conseguia pintar uma realidade mais complexa e nuançada. No caso comunista, tomar partido significava também produzir uma literatura com linguagem mais acessível ao operariado, pressuposto do realismo socialista. Era a corrente que tentava adequar a literatura aos propósitos da Revolução Russa de 1917. Salvaram-se os escritores que contornaram essas armadilhas.
No romance brasileiro, Graciliano Ramos e Jorge Amado, ambos comunistas, produziram no mesmo período obras de conteúdo diverso. Em 1953, Graciliano publicou Memórias do cárcere, em que relata sua experiência na prisão no governo de Getúlio Vargas. Embora o romance contenha uma denúncia, ele mergulha no drama psicológico de seus colegas de cadeia e descreve um cenário mais humano que político. Um ano depois, Jorge Amado publicou a trilogia Subterrâneos da liberdade, que também trata da repressão na ditadura de Vargas. Nesse caso, Amado produziu um livro panfletário. Enquanto Memórias do cárcere é uma das grandes obras da literatura brasileira, a trilogia de Amado é um grande desastre literário – além de um livro chatíssimo.
Para Gullar, essa é uma discussão que perdeu importância. “A função da poesia é criar fantasia, beleza e alegria para as pessoas, e não resolver problema social. Essa era uma ideia utópica, que acabou”, diz. Um sonho que acabou – assim como o do comunista Ferreira Gullar.
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