RIO - As imagens do trecho da Ciclovia Tim Maia destruído pelo mar violento em 21 de abril passado, levando para a morte pelo menos duas pessoas, ainda estão vivas na memória de boa parte da população. Mas, para algumas centenas de familiares e sobreviventes de outras tragédias igualmente insólitas ocorridas no Rio nas últimas décadas, elas representaram um doloroso déjà vu. Foi essa, por exemplo, a sensação do dentista Antônio Molinaro, que reviu, em frações de segundos, os quatro anos de sofrimento a que foi submetido desde que o Edifício Liberdade, na Avenida Treze de Maio, no Centro, ruiu, no início da noite de 25 de janeiro de 2012. O desmoronamento deixou 17 mortos e cinco desaparecidos. Ao desabar, a construção arrastou com ela outros dois prédios e 40 anos de investimentos de Molinaro no consultório odontológico que tinha no edifício e virou poeira.
Quando viu as imagens das ondas batendo na ciclovia, o resgate dos corpos pelos bombeiros e o desespero das famílias, o dentista também vislumbrou o que, para ele, será o desfecho para mais essa tragédia:
— Não vai dar em nada.
A descrença tem razão de ser. Para tentar entender por que tragédias tão graves são recorrentes no Rio, O GLOBO reviu dez casos que abalaram cariocas e fluminenses. Neles, morreram 158 pessoas. Entre os acusados, 58 foram indiciados e dez, condenados. Destes, apenas três chegaram a ficar presos, num período que, somado, não chegou a sete meses.
Já entre as vítimas, a maioria sequer foi indenizada.
— Eu sempre deixava o consultório por volta das 21h, mas naquela noite saí antes. Pelo menos 22 pessoas morreram soterradas ali. E o que fizeram? A prefeitura e os bombeiros correram para tirar os escombros, não foi feita perícia, e a Justiça decidiu agora que não houve culpados. Não consegui, por isso, receber nem o seguro. Tudo que foi construído com tanto sacrifício virou uma montanha de escombros, levada para o lixão de Gramacho, onde, com certeza, também estão os corpos das cinco pessoas que continuam desaparecidas. Eu vou responsabilizar quem, se não há perícia, provas? Perdi a crença na Justiça e, sinceramente, cansei de lutar — lamenta Molinaro, a única pessoa que chegou a ser presa no caso, por acusar bombeiros de desaparecerem com pertences das vítimas.
ERROS DE CÁLCULO EM EDIFÍCIO
Na lista de tragédias pesquisadas pelo GLOBO, problemas de engenharia, imprudência e falta de fiscalização efetiva por parte do poder público estiveram entre as causas da maioria delas. Foi o que aconteceu no caso, por exemplo, do desabamento do Edifício Palace 2. O desmoronamento de duas colunas do prédio, em 22 de fevereiro de 1998, expôs os erros de cálculo na construção. Na época, chegou até a se acusar a empreiteira de usar materiais baratos, como areia de praia e conchinhas. O ex-deputado Sérgio Naya, dono da Sersan Engenharia, foi inocentado no processo e morreu em fevereiro de 2009. O único condenado, um engenheiro, passou 29 dias preso e, depois de receber a sentença, prestou serviço comunitário.
O naufrágio do Bateau Mouche
Foi às 23h50 de 31 de dezembro de 1988, na entrada da Baía de Guanabara, deixando 55 mortos. Os 11 réus foram absolvidos em primeiras instâncias. Os gerentes Álvaro da Costa e Faustino Vidal foram condenados em 2ª instância ao regime semi-aberto, mas fugiram do país.
A maior pena ficou para as vítimas: passados 18 anos, elas ainda não conseguiram reaver o valor dos imóveis que viraram poeira.
— A gente sofre toda vez que vê uma nova tragédia acontecendo no Rio. É como se tudo voltasse outra vez. A gente fica triste, porque vê que nada mudou — conta Rauliete Guedes, uma das proprietárias, que fundou uma associação de vítimas, na esperança de que as coisas melhorariam. — Nós não recebemos ainda nem 50% do que nos é devido. O processo está parado desde 2009. Ainda nos devem mais de R$ 100 milhões, e estamos assistindo à dilapidação do patrimônio do Naya, com arrestos de outros processos contra ele, sem poder fazer nada.
Nas tragédias marítimas ocorridas no Rio, as investigações também apuraram erros de projetos em reformas de embarcações e omissões em fiscalizações. Após a tragédia do Bateau Mouche IV, que matou 55 pessoas em 31 de dezembro de 1988, autoridades preconizaram o endurecimento das regras e do controle. As mudanças anunciadas, porém, não conseguiram evitar que, 15 anos depois, o naufrágio do Tona Galea, em 2003, tivesse as mesmas causas do caso do Bateau Mouche — e o mesmo desfecho.
— A perspectiva da reprovação sob a ótica criminal é bastante reduzida, pois o desvalor preponderante incide sobre a conduta e não em razão do resultado morte — explica o desembargador Murilo Kieling.
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PROCURADORA DIZ QUE LEGISLAÇÃO É BRANDA
Para a procuradora da República Silvana Batini, que denunciou os donos do Bateau Mouche por crimes de sonegação fiscal e lavagem de dinheiro, a legislação precisa mudar:
— O problema é que a legislação brasileira de crime culposo é de 1940 e branda. Precisamos mudar essa cultura e agravar as punições em crimes dessa natureza.
Para engenheiros, a origem do problema sempre esteve na questão financeira dos contratos de obras e serviços. Como defendeu o engenheiro militar francês Sébastien Le Prestre de Vauban há mais de 300 anos: “As empresas retardam e encarecem consideravelmente as obras, cuja qualidade é a pior possível, na busca de barateamento dos custos. Um empreiteiro em prejuízo se assemelha a um homem que se afoga; ele se agarra a tudo que pode, o que significa: não pagar a fornecedores, pagar mal aos empregados e não empregar senão os materiais da pior qualidade.” Sébastien trabalhou para o rei Luís XIV em 1683, mas sua análise se revela mais atual do que nunca.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/rio/rio-tem-historico-de-tragedias-em-que-impunidade-o-traco-comum-19257281#ixzz493CxUV5X
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