Reunir as melhores crônicas de Luis Fernando Verissimo publicadas no último ano já seria uma tarefa difícil. Fazer uma seleção entre os textos publicados ao longo dos seus 50 anos de carreira parecia, então, quase impossível. Mas aconteceu: “Verissimo Antológico – Meio século de crônicas (ou coisa parecida)”, coletânea com mais de 300 textos, chega ao mercado em formato e-book
Pensei em escrever esse texto sobre Luis Fernando Verissimo em formato de crônica. Descartei a ideia imediatamente. Por diversas razões, mas principalmente porque a imagem de Verissimo jogando a revista na lareira de sua casa me atormentaria até o final dos meus dias. Ou pior: talvez a própria lareira rejeitasse o escrito. Afinal, não é uma chaminé qualquer que aconchega a residência de Petrópolis, arborizado bairro de Porto Alegre, onde o autor mora desde a infância e há 57 anos divide a casa com a mulher, Lúcia. Aquela é a lareira ao lado da qual seu pai, Érico Verissimo, escreveu seus clássicos. Para se ter uma ideia, no relógio da escrivaninha e pela janela, ele acompanhava, respectivamente, o tempo e o vento. É de se supor que o fogo, ali, esteja acostumado a ser alimentado com palavras mais saborosas.
O livro “Verissimo Antológico — Meio século de crônicas (ou coisa parecida)” reúne mais de 300 textos publicados em jornais e revistas de todo o País. A carreira como cronista começou precisamente em 19 de abril de 1969, quando o autor estreou em uma coluna no “Zero Hora”, o mais gaúcho dos jornais de Porto Alegre. A referência nominal à cidade faz sentido porque só assim podemos compreender por que Verissimo escreve como ninguém. Como ninguém, não: como um único alguém. Ele mesmo. Os gaúchos são brasileiros elevados à enésima potência. São mais difíceis de agradar, no bom sentido. Um governador nunca se reelegeu no Rio Grande do Sul. As condições e contradições do País são, para eles, um verdadeiro banquete onde podem degustar suas opiniões e regurgitar suas críticas. Verissimo é um gaúcho da gema, se é que existe isso. Em seu pequeno refúgio no Sul, longe das árvores da Amazônia, do sertão nordestino ou dos arranha-céus da Avenida Paulista, ele é o mais brasileiro dos cronistas. Ou o mais cronista entre os brasileiros. Não precisa sair por aí para decifrar ou devorar o zeitgeist do País: o Brasil entra por suas janelas e vai parar em suas palavras, tornando-se seu.
Ao longo de 50 anos, as crônicas de Verissimo passeiam pela nossa história como um registro bem humorado de tempos leves e pesados. Durante o regime militar, era obrigado a caprichar nas sutilezas para que os censores não as captassem; no processo de redemocratização, narrou a esperança pela qual estamos esperando até agora. Do início da revolução digital à polarização dos dias de hoje, Verissimo tem sempre algo inteligente a dizer. Essa capacidade de síntese é um de seus 534 maiores talentos. Às vezes seus textos são engraçados, mas é porque o brasileiro é um povo divertido mesmo. Em outras, o humor pelo menos ajuda a varrer nossos problemas para baixo do sorriso. Apesar das crônicas nesse e-book serem separadas por décadas, o leitor pode abrir em qualquer página virtual e dar de cara com o mesmo País. Os problemas podem até ser outros, mas Verissimo encontrou uma forma única de transformar cinco décadas da história de um povo em uma coleção de crônicas – ou coisa parecida.
ENTREVISTA
Luis Fernando Verissimo, escritor
“Uma boa crônica é lida e entendida em qualquer contexto”
Istoé – Nesses 50 anos de carreira, o senhor já escreveu milhares, talvez milhões de crônicas. Como foi possível escolher entre elas? O que torna uma crônica melhor que as outras?
Luis Fernando Verissimo – O critério da escolha deve ser a atualidade da crônica, mas isso nem sempre vale.
Às vezes a qualidade do texto independe da sua atualidade. Mas, em geral, uma boa crônica é lida e entendida em qualquer contexto. Você lê hoje as crônicas do Rubem Braga ou do Antonio Maria escritas há 50 anos
com o mesmo prazer de antes, por exemplo.
Antes de a música existir, ela é apenas silêncio. Antes de a crônica existir, é apenas um papel em branco. Qual é a diferença entre tocar e escrever? Para o senhor, que também é músico, o que seria o equivalente, na escrita, ao improviso no jazz?
Tentativas de escrever com o mesmo abandono com que se toca jazz não deram certo até agora, na minha debatível opinião. Estou pensando na literatura do Jack Kerouac e outros da sua geração. Um improviso de jazz permite uma liberdade que um texto que tenta simulá-lo, e ao mesmo tempo ser coerente e pensado como deve ser um texto literário, não consegue.
Qual é o assunto que sempre rende crônica? Há algum assunto sobre o qual é impossível dedicar
uma crônica?
Numa crônica cabe tudo. Qualquer assunto é assunto. O que se pode ou não se pode escrever é outra história. Depende do regime vigente. O regime vigente exerce grande influência sobre cronistas.
O Brasil de hoje rende uma crônica engraçada, triste ou absurda?
Triste, a caminho de absurda.
Se o senhor pudesse escolher apenas uma crônica, qual seria ela?
Essa eu vou passar. As crônicas são, mais ou menos, filhas da gente. Você pode ter uma filha favorita, mas não pode dizer qual é.
Há muita gente que acredita em ‘fake news’ – às vezes nem é por má fé, mas porque elas fingem ser as verdades que essas pessoas querem acreditar. Como se proteger das ‘fake news’? Como separar as ‘fake news’ das ‘news’?
Não há o que fazer contra “fake news” ou textos apócrifos. Só confiar que pessoas com um mínimo de informação ou discernimento saberão identificar o “news” real. No caso de crônicas com assinatura falsa, muitas vezes você se surpreende com a qualidade de um texto cujo autor não quis se identificar, ou preferiu atribuí-la a outro. Talvez por modéstia exagerada. Está tão difícil fazer algo que preste que nenhum elogio deve ser desperdiçado.
ara um escritor conhecido pelo bom humor, como competir com as notícias que se lê nos jornais?
Quem quer fazer humor profissional hoje em dia tem que competir com uma realidade cada vez menos engraçada e, principalmente, com os humoristas amadores, que tomaram o poder.
Com a pandemia, o esporte parou totalmente. Como o senhor tem sobrevivido sem futebol?
Não tem sido fácil. Nosso consolo é que, graças ao coronavírus, nenhum time está ganhando mais do que o Internacional, atualmente.
O senhor vê grandes cronistas brasileiros atualmente? Alguém que chame a sua atenção?
O melhor que apareceu nos últimos anos é o Antonio Prata. Também gosto muito do Gregório Duvivier, do Marcelo Adnet, do Fernando Caruso e da turma do Porta dos Fundos.
Saindo das crônicas e indo para a política: imagino que a escolha seja difícil, mas qual é o pior ministro do governo federal? E por quê?
Escolha difícil. Me dá mais um tempinho?
O senhor vê alguma liderança jovem e inspiradora na política? Como avalia até agora o trabalho
do governador Eduardo Leite?
O Eduardo Leite está indo bem, dentro dos limites do possível. Os limites do possível é que não estão ajudando ninguém.
Já que não entraram no livro, é bom perguntar: o que a Velhinha de Taubaté, o Ed Mort e o Analista de Bagé achariam do Brasil de hoje?
Todos estão fazendo a mesma pergunta: como é que se chega na Nova Zelândia?
“Não há o que fazer contra ‘fake news’ ou texto apócrifo. Só confiar que pessoas com um mínimo de informação ou discernimento saberão identificar o ‘news’ real”
Revista IstoÉ
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