Era 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, e um comentário na rede social expôs o tamanho do buraco em que a liberdade de credo está metida. Num post, dois recados: 1) As religiões de matriz africanas serão sempre minoria; 2) Majoritário, portanto hegemônico, no país é o cristianismo. Li a mensagem, que denunciei como inadequada, horas depois de falar sobre Mãe Gilda de Ogum, homenageada com a efeméride instituída pela Lei 11.635/2007. Gildásia dos Santos e Santos era ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum, terreiro da mesma Bahia por onde os colonizadores inauguraram a invasão das terras, a pilhagem da riqueza, a subordinação dos corpos, a conversão das almas no Brasil. Ela morreu há 20 anos, após complicações de saúde decorrentes de agressões verbais e ataques à comunidade religiosa.
Uma foto de Mãe Gilda estampou em 1999 reportagem da “Folha Universal” que relacionava religiões de matriz africana a charlatanismo e golpe financeiro. Identificada, ela foi perseguida e teve a vida abreviada por um infarto fulminante, em 21 de janeiro de 2000. A filha e sucessora da líder religiosa, Jaciara Ribeiro dos Santos, acionou judicialmente a Igreja Universal do Reino de Deus, instituição à qual o jornal é ligado. Em 2009, o Superior Tribunal de Justiça condenou a IURD à retratação e indenização por danos morais. A data de morte tornou-se símbolo da luta contra a intolerância religiosa. Terça passada, no Parque Metropolitano do Abaeté, em Salvador, ela foi homenageada com toque de atabaques, flores e alimentos sagrados.
A perseguição ao candomblé, à umbanda e às demais religiões de matrizes africanas e ameríndias atravessa Colônia, Império e República. Acomodou-se com o arcabouço constitucional que instituiu liberdade de credo e criminalizou a perseguição a terreiros e filhos de santo. Nas últimas décadas, recrudesceu como atestam estatísticas do governo, da sociedade civil e até um relatório do Ministério Público Federal. No primeiro semestre de 2019, o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, recebeu 354 denúncias de discriminação religiosa, média de duas por dia. O serviço identificou a religião de 121 vítimas. Houve 26 agressões a umbandistas, 18 a candomblecistas, 17 a outras denominações de matriz africana. O número de queixas é crescente: nos seis primeiros meses de 2018, foram 221 denúncias; em todo o ano, 506.
No Rio, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa contabilizou 201 casos de agressões e ameaças em 2019, mais que o dobro de 2018 (92). Os ataques partem não só de líderes religiosos, mas de grupos de criminosos autodenominados evangélicos. Um em cada três episódios (35%) de violência religiosa ocorreu na Baixada Fluminense. Não por acaso, a cidade de Nova Iguaçu foi escolhida para abrigar o primeiro Núcleo Avançado de Atendimento às Vítimas de Intolerância Religiosa, parceria da Secretaria estadual de Desenvolvimento Social com a prefeitura. Desde fins de 2018, o Rio tem delegacia especializada em crimes raciais e delitos de intolerância, a Decradi.
Religiões de matriz africana não buscam hegemonia; nada têm a ver com catequese, conversão forçada, imposição. O que mães, pais e filhos de santo reivindicam, desde sempre, é liberdade para praticar sua fé. E respeito. Existiram e resistiram nas frestas; assim, atravessaram os séculos num país assentado no racismo e no autoritarismo. Por isso, é revolucionário ver, no epicentro do racismo religioso, o carnaval se refundar pela via da reaproximação com seus personagens, tradições e territórios. Desidratadas de recursos financeiros e apoio político, as escolas de samba voltam às origens. No Grupo Especial do Rio, oito das 13 escolas fazem referências a divindades e encantados das religiões afro-ameríndias nos sambas-enredo: Viradouro (Oxum, Xangô), Vila Isabel (Preto Velho), Portela (Oxóssi), Mocidade Independente de Padre Miguel (Exu), Paraíso do Tuiuti (Oxóssi e o Touro Encantado de Lençóis, representação de Dom Sebastião, o rei desaparecido de Portugal), Grande Rio (caboclos, Exu, Oxóssi, Iansã), Beija-Flor de Nilópolis (Exu) e Estácio de Sá (Xangô).
Na homenagem mais explícita, os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, da Grande Rio, apresentarão Joãozinho da Gomeia, Tata Londirá, um dos sacerdotes de candomblé mais famosos do Brasil. O enredo, sugerido por componentes antigos da escola, foi abraçado pela dupla de artistas, estreante na agremiação e no Grupo Especial. No refrão contundente, cantado a pleno pulmões, a comunidade escancara o combate à intolerância: “Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé /Eu respeito o seu amém, você respeita o meu axé”, nítida referência à perseguição de denominações neopentecostais aos cultos afros.
A polêmica do ano, contudo, ronda a Mangueira, que levará à avenida um Jesus Cristo pobre, de rosto negro, sangue indígena, corpo de mulher, concebido pelo carnavalesco Leandro Vieira à luz de uma interpretação progressista e inclusiva da Bíblia. As críticas por católicos e evangélicos conservadores e dogmáticos já renderam até abaixo-assinado contra a escola. É a verdade absoluta dos homens de bem que monopolizam o debate político, se impõem à criação artística, interferem nas políticas sociais, desprezam a liberdade de credo, apequenam a democracia. Não respeitam a diversidade. Nem no amém, nem no axé.
Nenhum comentário:
Postar um comentário