‘Não queira estar no meu lugar” — vitimizou-se Jair Bolsonaro. Não quero — respondo. Por isso não me candidatei à Presidência nem fiz campanha — ilegalmente — por quase quatro anos. Há método, porém, na falsa incoerência. O líder que, eleito como consequência do próprio empenho, projeto de uma vida, reclama do fardo como se cumprisse missão divina é aquele que — síntese do populista autoritário — pede, cobra, adesão incondicional. Ele se sacrificou por nós. Não é isso?
Bolsonaro, o que se martiriza pelo Brasil, pede — cobra — adesão incondicional tanto quanto não hesita em se livrar dos que instrumentalizou.
Investido de poder pelo presidente e estimulado por ele (“secretário de Cultura de verdade”), Roberto Alvim cumpriu seu papel. Mais um kamikaze disparado para desfiar o tecido social de um país há muito em profunda depressão política; um país cujo liberalismo, por exemplo, dá-se à luxúria de se crer somente econômico — a própria expressão da doença — e capaz de prosperar servindo ao ressentimento reacionário (a própria definição de suicídio).
O erro de Alvim: explicitar a essência do bolsonarismo
Como todo fusível, Alvim queimou. Há vários assim, peões de baixo alcance, à mão do projeto bolsonarista de afrouxamento da democracia liberal. Sim, as instituições mobilizaram-se para mostrar que o vídeo do então secretário de Cultura, aquele com referência a texto nazista, violava valores inegociáveis. Não havia dúvida de que a reação viria; tampouco de que Alvim seria lançado ao mar. O problema está na frequência com que as instituições ora são provocadas no Brasil — o que significa que os freios de nosso sistema, por enérgicos que sejam, submetem-se ao desgaste de um uso excepcional, não sendo improvável que, tão esticados, cedam algum terreno a cada vez que acionados. Alvim vai. A ideia fica.
Alvim morto é Alvim posto. Um provocador que veio para trombar, para testar linguagem, averiguar reações e avançar algumas peças retóricas extremadas — que equivalem a iscas para demonstração de fidelidade, de submissão. A ideia fica e circula. Considerada a relativização do discurso do sujeito por influentes pensadores do bolsonarismo, a questão agora consiste somente em medir como o arreganho fascista chegará ao guarda da esquina. Sempre chega.
A mensagem contida no vídeo tem a arte apenas como um meio para expressão da fé autocrática: o Estado como gerador de uma nova civilização brasileira; um Estado em que à elite dirigente — a um indivíduo como Roberto Alvim — é pedido que faça uma cultura. Isto mesmo: que faça uma cultura. Onde já vimos algo dessa natureza?
O padrão autoritário de comunicação bolsonarista é conhecido. Alvim sentiu-se à vontade para pontificar sobre “as aspirações urgentes do nosso povo”. Reproduzia o chefe. O presidente é um que fala para uma pequena porção da sociedade, mas que arma esse discurso, segmentado, com pretensão totalizante. Comunica-se para poucos, trata da agenda de pouquíssimos, mas como se para todos, de todos — o que é uma das formas de exclusão que caracterizam os populistas autoritários.
Os frequentes impulsos extremistas de Bolsonaro autorizam vídeos como o do ex-secretário de Cultura. É impossível não ver, na versão de Alvim, um desenvolvimento da estética das lives do presidente.
Roberto Alvim era descartável. Se louco, um — mais um — escolhido e empossado por Bolsonaro. Outros como ele virão. São agentes antiliberais a serviço de uma concepção de Estado que, sem a vigilância da democracia, terá a sua musculatura aplicada contra os cidadãos — contra aqueles que, sem serem o mal, não veem nobreza em “mitos fundantes” como pátria, família e Deus.
A própria ideia de cultura — um campo de guerra e, pois, de imposição —veiculada pelo bolsonarismo mostra que aquela secretaria não importa senão como estrutura, máquina, para a destruição; inclusive de quem a comanda. O próximo Alvim — ainda que Regina — virá para morrer.
O próximo Wajngarten também virá para morrer.
O presidente sabia da atividade — típico ato de improbidade administrativa — do chefe da Secom. Não se incomodou com a irregularidade. A razão é dupla: nunca se importou com o auxiliar; o auxiliar está ali como escada, gatilho, como criador mesmos de arestas, para seus ataques à imprensa.
De resto: ninguém melhor do que ele, Bolsonaro, sabe se desvincular da responsabilidade por aqueles a quem delega. Fábio Wajngarten tinha uma missão a cumprir no governo — e a cumpriu. Enquanto o presidente avaliar que pode mantê-lo como o zumbi que já é, zumbi será, exposto e progressivamente enfraquecido, ainda assim carne para substanciar suas afrontas ao jornalismo. Se e quando a situação se tornar insustentável, já de todo afastado do elemento, de todo murchado o elemento, colocará outro no lugar do descartável.
Não faltam Waingartens à disposição do presidente. O problema é a ideia: que fica.
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